Mail box

Mail BoxFilho, não se surpreenda, nem duvide da autenticidade desta mensagem. Sou eu que estou escrevendo, mesmo. Suas possíveis lágrimas derramadas com meu desaparecimento tinham apenas meia razão de ser. Desculpe, mas não foi possível avisar. Ainda corro risco por escrever, mas não resisti ao contato. Estou livre como nenhum homem jamais esteve, filho. Talvez você possa um dia usufruir de minha experiência… Bem sucedida. A essa altura você talvez esteja adivinhando o que quero dizer… Sim, é isso. Eu consegui. Destrua essa mensagem após a leitura. Ela é a primeira de outras. Não tente respondê-la. Desenvolvi um software próprio para te escrever. Finalmente não preciso usar as mãos. Até mais. Cuide-se.

Encarei o e-mail como uma brincadeira idiota. Mais, talvez uma vingança de algum dos inúmeros desafetos de meu pai, não contente com seu desaparecimento físico. Torturar seu único filho talvez aplacasse a ira de alguém que se oponha às suas idéias progressistas. Talvez um dos muitos que não as julgava tão progressistas assim. Mas havia alguma coisa no estilo da escrita que era muito dele. Quando escreve por exemplo que “estava livre como homem nenhum jamais esteve” sua voz é própria, dele. Resisti em deletar o texto. Não queria fazer o jogo do zombeteiro, por outro lado, alguma coisa real me apegava àquelas palavras. Gravei em disco e mostrei para Alma. Minha mulher fora íntima de papai durante muitos anos. Conhecia seu modo de agir. Ela decretou: o texto é de Caio. Argumentei que papai estava bem morto. Seu corpo fora cremado conforme desejo expresso. Ela sorriu. Pude ler em seu rosto tudo o que estava pensando. Caio era esperto demais para desaparecer sem surpresa. Ela tinha razão.

Filho, demorei algumas horas para escrever essas poucas linhas. Empaquei na primeira sentença. “Estou vivo”, escrevi, e logo acionei o backspace. Isso é pouco, Júlio. Vivo está você, sua mulher, meus netos, o resto da humanidade. Vocês estão vivos porque vão morrer. Eu estou eternizado. Bem, agora está dito e posso começar a falar. Minha condição supra existencial, acho que posso dizer assim, me coloca aonde nenhum homem jamais esteve. Mais, eu sou a essência pura do homem livre. Engraçado, Júlio, é tal a minha independência que preciso de alguém. De você. Te convoco a ser minha ponte com o mundo. Desculpe a imodéstia, filho, mas é uma honra para você. Estou tentando elaborar os próximos passos.

Esse segundo e-mail deixou a certeza de que era ele quem falava. Chamei Alma, tomado de angústia metafísica. Ela leu e sorriu novamente, mas desta vez não consegui ler seus pensamentos. Quase gritei pedindo sua interpretação. “Ele programou um processador para emitir mensagens após o seu desaparecimento. As últimas blagues”. Fazia sentido, papai fora um genial cientista da informática. Desenvolvera avanços na área que a humanidade ficaria lhe devendo para todo o sempre. Além disto seu excelente humor faria supor tais desdobramentos. Só uma coisa não se encaixava. Não havia sinal de que soubesse de sua morte com antecipação, nem, aparentemente cometera suicídio.

Júlio, o tempo para mim não existe mais. Considere portanto os quarenta e dois dias passados entre esta e a última mensagem como apenas alguns segundos. Sei que devo contar com a sua mortalidade, mas, perdoe-me, a nova condição ainda não me tomou inteiramente. Preciso anunciar a vocês, humanos vivos, a minha descoberta, invenção, condição, como devo chamar o que estou sendo? Sim, filho, puro ser. Inefável ser. Condição do super-homem, não de Nietszche, super-homem de Caio da Silva Luz. Passarei para a história, cheguei a pensar. Mas logo retifiquei, quando todos chegarem à minha condição, nem história mais haverá. Perdoe-me, filho, mas preciso interromper-me. Em breve voltarei a contatar.

Bem, esse terceiro e-mail colocou-me em oposição a minha mulher. Alma continuava a sustentar a tese da blague póstuma, para mim papai estava vivo, ou alguma coisa assemelhada. Rodei até o laboratório de Praia Bonita. A Fundação Caio Luz funcionava lá. Papai em sua absurda independência montara uma central informatizada que se utilizava de um único funcionário. Era um pobre homem semi alfabetizado. Ele verificava os indicadores da bateria nuclear que sustentavam toda a parafernália funcionando. Os computadores da Fundação mantinham a sua obra teórica intacta. Em qualquer parte do mundo, através da rede, a população do planeta podia acessar os conhecimentos ali contidos. Era vetado o acesso de qualquer pessoa além de Paulo Cordo, o tal guardião. Mas eu era o filho. Suspeitei que os e-mails partiam dali. Só consegui chegar até uma primeira sala onde um terminal dava acesso aos arquivos tanto quanto qualquer computador doméstico ao redor do mundo. Voltei para a casa num certo desconsolo.

Esqueça a Fundação, filho. Eu posso informar o que é preciso saber. Aliás eu sou só informação, agora. Peço-te algum tempo antes que possamos conversar diretamente. Preciso me acostumar à nova condição. É incrível, Júlio, como a consciência livre do corpo está, ao mesmo tempo, totalmente só e absolutamente integrada. Você e Alma poderão usufruir disto também. Pedrinho ainda é muito pequeno. Tenho pensado que talvez não seja preciso nascer novas crianças num futuro próximo. Um número de consciências a ser definido habitará tudo. Tudo? Tudo o que, Júlio?

Esse e-mail estava na caixa de correio de meu computador quando cheguei em casa. Foi aterrorizante porque era a prova de que papai não só vivia como era informado de meus passos quando estivesse próximo dele. Chamei Alma. Concluímos que ele estava na Fundação. Estava? O que significava ser e estar para meu pai, agora?

Alma sugeriu que falássemos com John Hamilton. Ele fora assistente de papai durante vinte anos até que os dois romperam. Ele nos recebeu com gentileza, mas quando falamos de Caio, perdeu o aplomb. Levei um pequeno gravador dentro do bolso do casaco:

Alma: O senhor está a par das pesquisas que Caio estava desenvolvendo nos últimos anos?

John: Até nossa divergência há dois anos eu partilhava de todos os seus experimentos.

Alma: E o que ele estava tentando fazer?

John: Tudo o que foi pesquisado está no site da Fundação.

Alma: É mesmo? Ele não tinha um campo secreto de pesquisa?

John: OK. Vocês querem saber da loucura? Caio era obcecado por abandonar o corpo. Ele queria transformar-se num processador de dados. Nosso rompimento aconteceu por esses delírios dele.

Júlio: Não havia a menor possibilidade de suas pesquisas darem bons resultados?

John: Resultados, talvez, mas bons?

Caro Júlio. Finalmente, consegui ajustar a minha realidade à ação. O grande perigo do estágio em que estou é sua incrível fragilidade. Cá entre nós, posso ser deletado até por acidente. Mas esse momento fugaz vai passar. Posso revelar agora. Consegui “entrar” no sistema acoplado da Fundação. Estou contido em um programa que deve estar aparecendo aí no canto de sua tela. Basta você “clicar” no ícone IN THE BOX para que eu seja instalado em seu computador. E poderemos conversar então. Mas quero mais do que isso, Júlio, quero que você me envie para a lista de endereços que vai em anexo. Serei instalado então em máquinas de todo o planeta, e o primeiro homem realmente ubíquo. Qualidade que a superstição antiga atribuía a deus. Foi necessário, por razões técnicas, que alguém acionasse o programa após a minha conversão em megabits. Pensei que esse alguém só poderia ser você, meu único filho, ou Alma. Mas confiar essa tarefa a uma mulher pareceu-me arriscado, não por incapacidade física… bem, divago. Acione o sistema, Júlio. Entre para a história da super humanidade. Sim, Júlio, a humanidade que nós conhecemos encerrou seu ciclo. Estamos livres do macaco, Júlio, finalmente seremos pura energia.

Bem, esse e-mail congelou minha medula. Bastava clicar para abrir o programa. Após a leitura da mensagem me ergui e tranquei a porta do escritório. As palavras estavam lá na tela. Clicar no ícone INTHE BOX. Lembrei de papai diante do primeiro PC, nos longínquos anos 90. Ele explicando para mim e minha mãe sobre a rede. Falando de como o homem poderia se superar. As horas e horas que ele passava trancado dentro de sua sala, em frente a tela do computador. O seu desespero porque eu não era um NERD. A sua aproximação de Alma após o meu casamento. A ida dela para a Fundação. A violenta e nunca explicada separação dos dois. Nunca compreendi muito bem esse mundo em que ele viveu.

Júlio, pelos relógios que regulam a vida de vocês, se passaram dez horas depois que você recebeu o meu e-mail. Basta você clicar no ícone, meu filho. Não haja como um covarde como tantas vezes. Não me decepcione. É melhor ser alguém que auxiliou a História do que não ser ninguém, Júlio. Clique no ícone IN THE BOX, agora.

Flávio Braga é autor do romance O que contei a Zveiter sobre sexo (Record, 2006)