Poder local e educação: os candentes caminhos de uma ação transformadora

Magda Furtado

Magda Furtado

Quando se fala em democratização das instâncias decisórias no âmbito educacional, muitos críticos temem a perda da qualidade da educação clássica, o enfraquecimento da autoridade docente e a desintegração da unidade de um sistema de ensino. Afirmamos, entretanto, que esses atributos já se encontram esgarçados, e que se trata na verdade de resgatá-los num processo de ressignificação, impregnando-os de valores como liberdade, responsabilidade e construção de sujeitos participantes.

“Eu queria, portanto, deixar aqui uma alma cheia de esperança.
Para mim, sem esperança não há como sequer começar
a pensar em educação.”

Paulo Freire, em
Mudar é difícil, mas é possível (1)

1- As possibilidades do poder local

Nem sempre os eleitores têm conhecimento das atribuições de cada esfera do poder; mesmo entre aqueles de maior grau de instrução e informação, há uma grande cobrança por resultados em áreas que não estão inteiramente ao alcance do poder local. Assim, entre as reivindicações mais comuns a propósito da eficiência dos serviços públicos, aparecem segurança (que é atribuição dos estados), saúde (encargos compartilhados entre as três esferas), transporte (parte no âmbito estadual, parte municipal) e educação (apenas o ensino fundamental e o infantil são atribuições do município).

Em educação, há muita solicitação, especialmente nas comunidades carentes, por escolas técnicas. Embora nada impeça que o município instale uma rede suplementar de cursos profissionalizantes de nível médio, caso o faça não só não receberá qualquer estímulo financeiro dos governos estadual e federal, como também não poderá contabilizar o montante empregado nos 25% das receitas totais que deverá destinar à rubrica “gasto com educação” no orçamento. Isso porque o ensino médio, seja técnico ou de formação geral, é atribuição constitucional dos estados. Mesmo assim, dentre as competências da prefeitura, a educação é área que está mais a seu alcance transformar. Na segurança pública, em termos de ação direta o prefeito fica de mãos atadas; na saúde os hospitais municipais recebem o reflexo da insuficiência da ação estadual e federal. Na educação fundamental e infantil, cada município se responsabiliza unicamente pelos alunos residentes em seu território, ao contrário da área da saúde, que, no caso das grandes cidades, recebe pacientes vindos de toda a região metropolitana em busca da melhor estrutura de seus hospitais. Quanto mais uma rede de saúde municipal melhora, tanto mais atrai pacientes do estado inteiro; assim, o aumento da demanda anula parcialmente os investimentos feitos. Já o planejamento na área de educação não está sujeito a esses fatores incontornáveis.

Entretanto, o investimento em educação demora a apresentar resultados visíveis e, devido a seu custo, costuma ser preterido por governantes em busca de ações de impacto imediato. De fato, intervenções pontuais, como um aumento emergencial de salários dos professores e a construção de prédios escolares, são importantes, mas ainda não bastam para um salto qualitativo na área da educação de base. Para uma verdadeira ação transformadora, o poder local precisa apostar no comprometimento dos principais interessados na qualidade da educação, ou seja, a comunidade escolar. A atuação radicalmente democrática fortalece medidas como a construção coletiva do projeto político-pedagógico e o estabelecimento de conselhos escolares comunitários com poder decisório. Em termos acadêmicos, a educação de tempo integral é o ideal, mas, como isso envolve a duplicação de toda a rede e a contratação do dobro dos profissionais atuais, só pode ser pensada a médio prazo e gradativamente. A primeira etapa certamente poderia ser implementada em comunidades carentes, onde as crianças têm menos acesso a bens culturais em casa e freqüentemente enfrentam a ausência dos familiares. Nesses locais a escola poderia funcionar também como um centro cultural e esportivo, aberta a toda a comunidade também nos fins de semana.

É bom deixar claro que nada disso é possível sem a melhoria geral das condições materiais de trabalho e a valorização do corpo docente e técnico em termos salariais e de formação. Nesse sentido, o prefeito será responsável por um plano que articule numa equipe capacidade técnica, experiência prática e sensibilidade política para apresentar prioridades orçamentárias e etapas de execução.

Evidentemente temos clareza de que a educação isoladamente não é capaz de transformar a realidade. Os tentáculos ideológicos do capitalismo, como a mídia, envolvem consciências e as seduzem pela atração de um consumismo que não está ao alcance de todos. Além disso, as limitações do sistema sempre atuarão no sentido de restringir verbas e reclamar pagamentos de juros das dívidas locais, sem mencionar a competição do sistema privado de ensino, para o qual não interessa a melhoria dos serviços públicos a ponto de lhe roubar a clientela. Seus defensores certamente farão oposição inclemente a todas as iniciativas que visem a ampliar a capacidade do município de fazer frente às despesas com o serviço público de qualidade. Mas, mesmo com todas essas dificuldades, está nas mãos do poder local a possibilidade de fazer com que diminuam um pouco as desigualdades de oportunidades entre os cidadãos – nesse sentido, a educação é um importante instrumento de justiça social. São candentes os caminhos, porém suas brasas podem iluminar também outras trilhas que temos a seguir para construir um novo socialismo.


2- Os ares democráticos fertilizam a aprendizagem

Quando se fala em democratização das instâncias decisórias no âmbito educacional, muitos críticos temem a perda da qualidade da educação clássica, o enfraquecimento da autoridade docente e a desintegração da unidade de um sistema de ensino. Afirmamos, entretanto, que esses atributos já se encontram esgarçados, e que se trata na verdade de resgatá-los num processo de ressignificação, impregnando-os de valores como liberdade, responsabilidade e construção de sujeitos participantes. A unidade do sistema de ensino deve ser considerada numa relação dialética com a diversidade social existente mesmo numa pequena cidade. Isso acarreta a necessidade de adequações de métodos de aprendizagem e avaliação, que precisam ser discutidas com a comunidade envolvida. Quanto à autoridade docente, ela se fortalece quando está apoiada não em meros esquemas punitivos, mas sim na experiência, no esclarecimento dos limites e na atribuição de compromissos a cada um dos segmentos. Já a educação clássica felizmente se transformou muito, e ter o conhecimento dessa revolução a cada dia, através da tecnologia interativa e de cursos de atualização, é um direito de todos os professores.

A sugestão da criação de conselhos escolares comunitários se fundamenta na evidência de que o poder central não tem como acompanhar todos os detalhes que envolvem a execução do projeto político-pedagógico em cada uma das unidades da rede municipal. Nesse caso, o rolo compressor da uniformização muitas vezes mata no nascedouro uma boa idéia de um membro da comunidade que poderia fazer toda a diferença na superação de alguma dificuldade local. O conselho escolar seria presidido pelo diretor da unidade e composto por representantes dos professores, servidores técnico-administrativos, alunos, pais e associação de moradores ou outras entidades do movimento social, todos eleitos por seus pares. Teria a função de deliberar sobre questões locais e de levar ao conselho municipal aspectos que envolvam alterações no projeto político-pedagógico. Seriam também apresentadas ao conselho municipal as sugestões que tiverem alcançado êxito na vivência daquela escola, para que sejam objeto de análise e possível adaptação para o conjunto da rede.

O conselho escolar, com algumas variações e outra nomenclatura, já é realidade em alguns sistemas educacionais. Entre os benefícios dessa democratização destaca-se a maior adesão da comunidade ao processo educativo como um todo. Ao participar das instâncias decisórias, os diversos segmentos se comprometem com a busca de resultados, que passam a representar vitórias coletivas. Mas é preciso frisar que esse conselho precisa ter poderes deliberativos nos aspectos referentes às especificidades locais, como recomenda Paulo Freire no texto “Educação e participação comunitária”(2). Caso contrário, fica esvaziado na prática e corre o risco de se tornar uma instância meramente legitimadora das propostas do poder central, fornecendo-lhe um verniz progressista.

3- A valorização dos profissionais da educação precede qualquer outra ação

Nada é possível fazer em educação enquanto os profissionais se sentirem acuados, desestimulados e descrentes no potencial de sua atuação. Portanto, sua experiência será sempre o vetor de qualquer ação transformadora. A valorização salarial é apenas o começo do processo e virá no bojo de um plano de carreira que estimule financeiramente a capacitação. Evidentemente não se pode falar em mudança verdadeira sem que os profissionais tenham condições de se atualizar, enriquecer sua vida cultural, fazer cursos de pós-graduação e compartilhar a evolução do conhecimento em nossa era. Só assim a carreira do magistério se tornará atrativa para as novas gerações. Outra meta de crucial importância e que requer cuidadoso planejamento é tentar fixar o maior número possível de professores em uma escola, em regime de dedicação exclusiva.

4- Financiamento e municipalização: entraves e perspectivas

Até agora enfatizamos os benefícios da descentralização da educação, ao falar das possibilidades da ação transformadora do poder local. Entretanto, conhecemos os percalços pelos quais passa a municipalização do ensino fundamental em um país de enormes desigualdades regionais e sociais como o Brasil(3). Esse processo teve início a partir da década de 50 e seu grande incentivador foi Anísio Teixeira, que defendeu a descentralização como estímulo à contextualização das políticas educacionais e reforço da autonomia municipal (4). Acelerou-se a partir da Constituição de 1988 – que estabeleceu o nível fundamental como obrigação dos municípios, atribuindo aos estados o ensino médio e à União o nível superior – mas ainda resta inconcluso. Assim, enquanto em alguns municípios com boa arrecadação ele ocorreu sem grandes traumas, vários outros simplesmente não têm como custear uma rede completa de educação infantil e fundamental, apesar da complementação do Fundeb (fundo de manutenção e desenvolvimento da educação básica e valorização dos profissionais da educação)(5). Mesmo em algumas grandes cidades ainda há uma rede estadual complementando a oferta, principalmente no segundo segmento do ensino fundamental (do 6º ao 9º ano, de acordo com a nova nomenclatura) e na chamada pré-escola, que é considerada praticamente um luxo pela administração pública e tem disponibilidade bastante reduzida. Já a rede federal de ensino, por seu ínfimo tamanho (menos de 1% na cidade onde tem maior presença, o Rio de Janeiro), por seu caráter de suplementação (já que a atribuição federal é o nível superior), e por receber maiores recursos governamentais, não pode ser tomada como parâmetro nesse quadro nacional em que predominam as discrepâncias regionais e sociais.

Atualmente o governo federal proclama que a universalização do ensino básico (nomenclatura que engloba o ensino fundamental e o médio), que se iniciou na década de 50, está completa, e que o desafio agora é a alcançar níveis razoáveis de qualidade. Diversos educadores atribuem esse crescimento sem qualidade à aceleração do processo de municipalização, reforçada por prazos exíguos estabelecidos por legislação complementar nos estados. As expectativas de aumento de verbas com a criação do antigo Fundef (hoje Fundeb) geraram uma corrida desordenada para a criação de redes municipais através de transferências de responsabilidade do governo estadual sem que houvesse planejamento e suporte financeiro adequado. Só receberiam os repasses do Fundeb os sistemas de ensino que estivessem adequados à nova legislação que determina as competências de cada esfera. Muitos municípios viram nessa obrigação uma questão apenas “imobiliária”, que se resolveria principalmente com a construção de prédios escolares, sem critérios adequados para a contratação de pessoal qualificado. Houve um notório aumento de matrículas de ensino fundamental nas redes municipais, sem que houvesse condições de oferecer um ensino com padrões mínimos de qualidade. Outros municípios continuam sem ter como assumir essa atribuição, dada a evidente insuficiência desses aportes financeiros. Os estados, ainda ocupados com esse processo de transferência do ensino fundamental, não puderam investir o suficiente na expansão do ensino médio, sobre o qual têm responsabilidade constitucional. Os críticos do processo vêem nessa corrida pela municipalização uma mera desoneração de responsabilidades financeiras por parte da União, em primeiro lugar, e secundariamente por parte dos estados. O custo calculado por aluno precisa subir, bem como as transferências por parte da União. O resultado desse açodamento na municipalização está patente hoje nos índices catastróficos das avaliações da educação básica no Brasil – mesmo considerando os pertinentes questionamentos que têm sido feitos a esses exames quantitativos.

Conhecer as limitações nos faz manter os pés no chão, mas a fertilidade do terreno nos resgata do risco do imobilismo. É candente a conclusão de que, tendo nas mãos do poder municipal o sistema de ensino fundamental e infantil, não se pode desperdiçar a oportunidade de intervenção direta de um governo comprometido com a construção da justiça social. Essa ação transformadora deixará marcas e unirá mais braços para a elaboração coletiva de um sonho maior, de socialismo e liberdade.

 

(1) FREIRE, Paulo. Mudar é difícil, mas é possível. In.: — Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Ed. UNESP, 2001, p. 171.

(2) FREIRE, Paulo. Educação e participação comunitária. In: — Política e educação. Indaiatuba, SP: Villa das Letras, 2007, 7ª ed, p. 76.

(3) Para uma visão aprofundada desse processo, especialmente no estado de São Paulo, ver BUENO, M. S. S; MARTINS, A.M.; OLIVEIRA, C. Descentralização do Estado e municipalização do ensino – problemas e perspectivas. Rio de Janeiro, DP&A, 2004.

(4) TEIXEIRA, Anísio. A municipalização do ensino primário. In: Revista brasileira de estudos pedagógicos. Rio de janeiro, v. 27, n.66, abril/junho de 1957. pp. 22-43. À Disposição em texto integral na Biblioteca Virtual Anísio Teixeira: www.prossiga.br/anisioteixeira

(5) Para mais informações sobre o Fundeb, ver neste link: http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=799&Itemid=839

 

Magda Medeiros Furtado é professora do Colégio Pedro II (RJ), Doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ e militante do Núcleo Zona Sul do PSOL/RJ.