O orçamento sem mistério

Eliomar Coelho

Eliomar Coelho

Já se consegue perceber a importância do orçamento público na vida de qualquer cidadão. Entretanto, muitos o chamam de peça de ficção. Por quê? Na verdade, não querem que a sociedade discuta, controle e avalie os resultados das políticas governamentais. Sendo assim, a resistência à democratização do processo orçamentário é puramente ideológica e baseada em três mitos: o da irracionalidade, o da irrelevância e o da complexidade.

““Não preocupar-se em absoluto com a opinião alheia,
é não só arrogância como também cinismo.”

Cícero

Embora para muitas pessoas o orçamento público continue sendo um caramalhaço cheio de números e códigos, é possível perceber que, cada vez mais, há gente discutindo, criticando e interferindo no processo orçamentário. Que bom! Mas, afinal, o que é o orçamento? É a expressão monetária de um planejamento, seja ele público ou não. Traduzindo: é dizer quanto custa em dinheiro o que se quer fazer e, não podemos esquecer, da onde virá esse dinheiro. Ao se colocar em valores o planejamento se evidencia as prioridades de um governo, família etc. Ou seja, a favor ou contra quem se estará agindo. Assim sendo, a questão central passa a ser quem decide sobre as prioridades. Em nosso país, a elaboração do orçamento é feita pelo chefe do Poder Executivo (Presidente, Governador ou Prefeito). A etapa seguinte é a aprovação pelo Poder Legislativo, que pode alterá-lo com algumas restrições. Em nível municipal, somente a Lei Orgânica e o Plano Diretor são legislações mais importantes que o Orçamento – o melhor instrumento de controle sobre o governo. Já se consegue perceber a importância do orçamento público na vida de qualquer cidadão. Entretanto, muitos o chamam de peça de ficção. Por quê? Na verdade, não querem que a sociedade discuta, controle e avalie os resultados das políticas governamentais. Sendo assim, a resistência à democratização do processo orçamentário é puramente ideológica e baseada em três mitos: o da irracionalidade, o da irrelevância e o da complexidade.

O Mito da Irracionalidade

“O orçamento é o instrumento de planejamento racional das atividades governamentais. Se o destino dos recursos públicos for determinado pelos políticos ou pela população, grandes distorções na política fiscal ocorrerão, comprometendo o desenvolvimento da economia brasileira.”

Ora, como o destino dos recursos públicos tem impacto diferenciado sobre os diversos setores da economia, haverá sempre alguns segmentos da sociedade mais favorecidos pela ação governamental. Logo, os arautos da racionalidade tecnocrática não advogam um processo apolítico. Por trás desse falso argumento técnico, está a tentativa de manter o processo orçamentário nas mãos de um pequeno grupo de altos burocratas, muitos sensíveis à influência da pressão direta dos lobistas do poder econômico e/ou dos governantes de plantão. Tal mito “justifica” a política econômica e social implementada e que resultou em: pior distribuição de renda, pífio crescimento econômico e, consequentemente, aprofundamento da desigualdade social.


O Mito da Irrelevância ou Peça de Ficção

“Num país de grande instabilidade econômica não é possível fazer a programação financeira das atividades do governo. O orçamento não passa de uma farsa, uma declaração de intenções que não serão cumpridas. Sendo assim, a participação do parlamento ou da população deve ser simbólica, já que o orçamento é irrelevante do ponto de vista prático.”

Tal argumento baseia-se na imprevisibilidade da economia brasileira, que contém meia verdade. É fato que a instabilidade econômica dificulta qualquer planejamento, porém não o elimina, pelo contrário, um planejamento eficiente e eficaz tem uma capacidade de ajustamento para correção e adaptação. Além do mais, foram desenvolvidos mecanismos orçamentários capazes de compensar as alterações imprevistas ou insuficientemente programadas, tais como: a reserva de contingência e a abertura de créditos suplementares (remanejamento) para a correção de rumo.

Nesse sentido, o processo orçamentário é a ocasião ideal para reavaliar o planejamento governamental.

O Mito da Complexidade

“A confecção do orçamento é extremamente complexa. São centenas de decisões que precisam ser feitas num curto espaço de tempo. Embora a participação da sociedade fosse desejável, elas não são factíveis. A sociedade não tem a capacidade de participar do processo orçamentário.”

É evidente que as decisões sobre o destino dos recursos públicos são extremamente complexas para qualquer um – prefeito, burocrata, vereador e cidadão. Ninguém é capaz de dominar todas as informações necessárias para tomar as decisões orçamentárias de uma grande cidade, de um estado ou de um país. Na verdade, a chave está no acesso às informações contidas nas peças orçamentárias. Logicamente informações de qualidade, coisa que não acontece no orçamento carioca (e nem no orçamento do estado do Rio de Janeiro, do Brasil tampouco!). Para melhorar a qualidade das informações orçamentárias bastaria o governo explicitar exatamente o que ele quer fazer com o nosso dinheiro. Dizer quantas vagas escolares serão criadas e onde; que ruas serão pavimentadas, quanto vai gastar no carnaval, na urgente reforma dos hospitais etc. Enfim, a verdadeira aplicação do orçamento-programa.

Um mau exemplo foi dado nos gastos públicos com os Jogos Pan-americanos. Inicialmente afirmaram que custaria cerca de 400 milhões (tudo somado: governos federal, estadual e municipal), hoje se sabe que a conta está perto de 4 bilhões. Onde está o planejamento? Um erro dessa magnitude só pode ser em decorrência de duas coisas: muita incompetência ou má fé. Nesse caso a má fé falou mais alta, pois realizaram uma tremenda transferência de renda dos mais pobres que pagam os impostos para os mais ricos. Um exemplo? O gasto de 400 milhões do contribuinte na construção do Engenhão e depois privatizá-lo. Enquanto isso a “urbanização” do Pavão-Pavãozinho vai custar R$ 37 milhões e a educação deixou de receber 500 milhões.

Será que o carioca de posse dessas informações concordaria? Não sei, só perguntando. Por isso Eliomar criou a Lei nº 3189, de 23 de março de 2001, que Dispõe sobre a participação da comunidade no processo de elaboração, definição e acompanhamento da execução do Orçamento. É uma tentativa de se implantar o Orçamento Participativo (OP) no Rio de Janeiro. Mas o que vem a ser o OP?

Nada mais é do que uma outra forma de elaborar o orçamento público que, como vimos, é uma atribuição do chefe do Poder Executivo. No OP a população é convocada a participar e decidir sobre a origem e o destino dos recursos públicos. Não se trata apenas de opinar ou sugerir obras/serviços: no autêntico orçamento participativo a sociedade também decide. Um orçamento participativo efetivo necessita de transparência e acesso às informações orçamentárias; engajamento de toda a administração, a começar pelo chefe (prefeito, governador ou presidente); adoção de um método simples e de fácil entendimento, autônomo em relação à administração; acesso democrático universal e, sobretudo, acatamento ao decidido no processo.

Esse processo de elaboração orçamentária traz inúmeras e diversas vantagens: inibe o clientelismo e a corrupção; potencializa a eficácia do planejamento governamental; aumenta a fiscalização sobre o gasto público e, enfim, transforma a relação governo/sociedade, estado/cidadão. Porém, o orçamento participativo é um processo inacabado e que precisa sempre ser aperfeiçoado, levando em consideração que é uma arena de disputa por recursos limitados, sem temer ou evitar os conflitos, pois são inerentes ao processo. A frustração, por não ver uma legítima reivindicação realizada, tem um preço elevado e pode inibir o desenvolvimento do processo. Neste momento é necessário a maior transparência possível das informações para que aflore uma das maiores virtudes do orçamento participativo, que é a conscientização dos limites do poder do estado e a solidariedade na compreensão do que é realmente prioritário para a comunidade. Ou seja, o pleno exercício da cidadania.

Com tais predicados é difícil encontrar adversários ao OP. Pero que los hay, hay.

Quem é contra o orçamento participativo, em geral, argumenta que há pouca representatividade dos interlocutores comunitários (conselheiros do OP) em comparação com o Poder Legislativo, ou seja, os parlamentares têm maior legitimidade que qualquer outro cidadão para discutir temas orçamentários. Clássica defesa da democracia representativa.

Há ainda os que dizem da sua pouca utilidade, pois a abrangência dos recursos objeto do debate são limitados pelo fato de que as despesas com juros e amortização da dívida; com pessoal mais benefícios previdenciários e outras de custeio consomem 80, 90 e às vezes 100% das receitas governamentais, logo, o que resta (investimentos) para o OP é sem importância. Tal argumentação parte do pressuposto de que tais despesas são imutáveis e não podem ser discutidas/alteradas. Falácia do pensamento neoliberal! A dívida pode e dever ser renegociada sempre que o interesse público se fizer necessário, e, conseqüentemente, as despesas decorrentes. Da mesma forma, as despesas com pessoal podem ser acordadas com representantes do funcionalismo, embora seja de difícil sustentação a redução do quadro de pessoal e/ou dos diminutos vencimentos da maioria dos servidores, em um país tão carente dos serviços públicos essenciais. Além do mais, o percentual destinado ao investimentos de 10, 15% e às vezes até mais do orçamento total tem um peso significativo. No Rio, fica em torno de 500 milhões/ano.

Existem também os adversários do OP não declarados. São aqueles beneficiados pelo círculo fechado da decisão orçamentária: clientelistas, corruptos e corruptores; encastelados tanto nos executivos quanto nos parlamentos brasileiros.

Mas os maiores adversários do OP são os oportunistas, aqueles que, pressentindo ou percebendo a popularidade do mecanismo, optam, por razões de cálculo político (não necessariamente eleitoral), por abraçar a bandeira de sua implementação, ao mesmo tempo que cuidam de esvaziá-lo. No fundo, são hostis à implementação do mecanismo de participação popular que vão além da pseuda-participação, ao restringir o processo participativo a meras consultas e informação (participação opinativa), sem admitir o cunho deliberativo. A opinião pública, confusa a respeito do que seja um orçamento participativo, poderá passar a ver com descrédito um mecanismo que se vulgariza, ao ser utilizado com graus de consistência e eficácia bastante variáveis. É o caso do Rio com a aplicação capenga da lei do Eliomar pelo prefeito.

Nem todos têm os mesmos objetivos com o OP. Há um grupo que reconhece a insuficiência da democracia representativa pela manipulação de informações, corrupção etc. Desta forma, acreditam que alguma dose de democracia direta corrigirá as distorções e/ou aprimorará o sistema. Normalmente, se identificam com o liberalismo político e com o capitalismo. Eles não buscam uma mudança social mais profunda.

Outro grupo não se limita a desejar um mero aperfeiçoamento do atual aparato político-institucional; quer, na verdade, a sua destruição (e do modelo capitalista). O projeto é subverter as regras do jogo e ultrapassar a ordem vigente – ainda que se tenha de começar utilizando algumas das instituições estabelecidas. A maior utilidade do orçamento participativo é proporcionar uma educação política das massas.

Portanto, a implantação do orçamento participativo facilita o controle social, porém não é a única forma. A sociedade pode e deve se organizar para atuar em todo processo orçamentário mesmo em municípios/estados sem o orçamento participativo.

A experiência mostra que acompanhar o uso do dinheiro público não é tarefa para uma só pessoa. A articulação de um grupo voltado para a questão orçamentária facilita o entendimento e a interferência no processo.

Enfim, há espaço para a cidadania intervir no destino dos recursos públicos e na definição das prioridades governamentais.

Vamos à luta!!

Eliomar Coelho é vereador do PSOL/Rio e Luiz Mario Behnken é economista.