O carro pagador do IPEG

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Quando procurei o Iúri[1] para dizer que não via mais sentido em continuar no partidão, ouvi dele que era para eu ter paciência, que algo de diferente estava sendo gestado.  Nós éramos do Comitê Secundarista do PCB no Rio de Janeiro.  Eu não me conformava com a linha política absentista do partido na luta contra a ditadura.  É claro que o papo não foi exatamente nesses termos, mas foi mais ou menos esse o teor da conversa.  Aliás, não cobrem precisão das palavras.  A ambiguidade delas é imanente  No caso das minhas, a imprecisão é ainda maior, por causa da amnésia que me corrói as reminiscências.  Guardo lembranças retalhadas, recordações em frangalhos, como um quebra-cabeça em que se perderam muitas das suas peças.  Por isso, para recompor o passado, às vezes, minto.  Consciente ou inconscientemente, preencho os hiatos da memória com invencionices, criações da imaginação, pura fantasia.  Mas, como ia dizendo, quando procurei Iúri, não suspeitava aonde aquela conversa me levaria.

Fruto desse papo germinal, um belo dia, outro companheiro me procurou.  Era o Crioulo[2].  A bem dizer, não sei se fazia um belo dia.  Tampouco me lembro se isso foi antes ou depois de eu ser apresentado ao Marighella.  Deve ter sido depois.  Eu já era estudante universitário, embora continuasse no Comitê Secundarista.  Mas o Crioulo chegou e me chamou para fazer um levantamento.  O Crioulo era da Seção Juvenil do Comitê Central do PCB, e também estava ligado ao Marighella.  Fomos até a frente do prédio do IPEG (Instituto de Pensões e Aposentadorias do Estado da Guanabara), na avenida Presidente Vargas, e ficamos observando a saída do carro pagador.  Era um carro forte que levava o dinheiro da sede para as agências.  Voltamos algumas vezes.  Acho que fui sempre com o Crioulo, mas pode ser que alguma vez tenha ido com o Iúri.  Sei lá.  Em todo caso, foram poucas vezes.

Disseram-me que a informação sobre os pagamentos do IPEG fora colhida nos jornais, o que era verossímil, pois o dia do pagamento, as agências e a lista dos beneficiários saíam publicados nos jornais.  Muito tempo depois, fiquei sabendo que a informação viera de dentro, por um contato do Marighella.  Tratava-se de uma alta funcionária do IPEG.  Para o que vou contar, entretanto, esse é um detalhe sem relevância.

A ação foi planejada e chegaram ao Rio os companheiro do famoso GTA, o Grupo Tático Armado de São Paulo.  Do Rio, participaríamos três companheiros: o Barba, o Poeta e eu.  Os dois primeiros ficariam no carro de cobertura; eu faria dupla com Marquito[3], o comandante da ação.

Hora e local aprazados, estávamos a postos.  Era uma agência. Na porta dela se formara uma fila de pensionistas.  Havia um PM guardando a fila e outro dentro da agência.  A ação começou com a chegada do carro pagador.  Minha tarefa era dar cobertura ao Marquito, que deu uma banda no PM que guardava a fila.  O cara era grandalhão, mas caiu de costas na calçada.  Com o impacto do tombo, o capacete dele voou prum lado e o revólver pro outro.  O PM esticou o braço, tentando alcançar a arma no chão.   Reagi com uma coronhada no couro cabeludo dele.  A cabeça rachou e o sangue jorrou.  Inseguro da eficácia do meu golpe, ia desferir outro em seguida, mas o Marquito me deteve.  O cara estava desmaiado.   Respirei aliviado.  Eu estava muito tenso e ao mesmo tempo orgulhoso da minha coronhada.  Era a primeira vez que participava de uma ação armada.  Marquito, mais experiente e comedido, comentou que eu não precisava bater com tanta força na cabeça dos outros.

Com a respiração ainda ofegante, vi que na calçada oposta caminhava, displicente, outro PM.  Atravessei a rua, correndo em direção a ele.  Ele vinha distraído porque estava paquerando uma mulher.  A mulher devia ser jovem, talvez atraente, e com certeza desfilava coxas, bunda e peitos que eu não notei.  Minha atenção estava toda concentrada no PM.  Surpreendi-o com um soco frontal do cano do revólver no seu tórax.  Acho que a força do golpe foi excessiva de novo.  Eu ia sempre com demasiada sede ao pote.  Ele foi jogado contra a parede e caiu sentado, com um olhar apavorado, pedindo pelo amor de deus para que eu não o matasse.  Talvez tivesse se machucado com o choque do cano do revólver contra o seu diafragma.  Vi que estava desarmado e vulnerável.  Dava pena.  Parecia muito fragilizado.   Procurei pela mulher.  Nem deu pra sacar se valia a pena.  Havia desaparecido.  Voltei para junto do Marquito.

Estava tudo dominado.  Então, entramos no carro pagador.  Mas, para minha surpresa, havia lá dentro um senhor agarrado feito um carrapato à sacola do dinheiro.  Eu disse para ele entregar a sacola e sair do carro.  Não me obedeceu,   Gritei com ele e nada.  Dei-lhe um tapa na cara.  Continuou imóvel.  Comecei a esmurrá-lo.  Ele não se mexia.  Eu já não sabia como proceder quando o Marquito disse para eu deixar o sujeito em paz.  Marquito tirou a sacola das mãos dele e o conduziu pelo braço, calmamente, para fora do carro.  Foi aí que percebi que o sujeito estava paralisado de pavor.  O que eu interpretara como resistência era apenas pânico.

A essa altura, a situação se complicara com a chegada de um carro da polícia civil que começou uma troca de tiros conosco.  O PM que estava dentro da agência também abriu fogo contra nós.  Ficamos sem poder usar a metralhadora porque o companheiro que a portava foi ferido no braço direito.  Mas conseguimos arrancar com o carro pagador, deixando a polícia para trás.

Numa esquina erma, eu e o Jonas[4] descemos do carro forte.  Caminhamos um pouco e tomamos um táxi para a Praça XV.  Jonas carregava uma sacola com a metralhadora que tomáramos de um PM que estava no carro pagador e fora rendido logo de cara.  O rádio do táxi anunciou o assalto ao carro do IPEG.  E mais: informou que os assaltantes fugiam com o dinheiro em direção à Praça XV.   No banco traseiro, Jonas e eu nos entreolhamos.  Chegando à Praça XV, pagamos a corrida e descemos do táxi.  Eu o aconselhei a não pegar a barca para Niterói.  Mas ele não fez caso.  Disse para eu ficar observando, porque ele estava determinado a atravessar a baía com a metralhadora.  Fiquei de olheiro.  Ele tomou a barca, que zarpou baía adentro.  Logo em seguida a polícia chegou, fazendo estardalhaço.  Retirei-me.

Devo ter passado uns dois dias dormindo, tamanha era a minha exaustão.  Quando acordei, liguei para o Aldo[5], que era companheiro e vizinho, e combinamos de nos encontrar na casa dele.

Aldo era sobrinho do Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara, Arcebispo do Rio de Janeiro, e morava com a avó.  Estávamos no quarto dele, conversando, quando fomos chamados à mesa, que estava posta.  Não me lembro se era almoço ou jantar.  Acho que era o almoço.  Fomos.  Quando sentei à mesa, a avó do Aldo me apresentou a um amigo dela que estava de visita e comeria conosco.  Tratava-se de um senhor de cabelos brancos ou grisalhos, não sei muito bem, mas que, para os meus padrões da época, era um velho.  Cumprimentei-o e me acomodei na cadeira sem prestar atenção nele.  Foi aí que a avó do Aldo introduziu um assunto espinhoso.  O amigo dela passara por uma experiência terrível.  Ele era tesoureiro do IPEG.  Estava dentro do carro pagador quando aconteceu o assalto.  Surpreso, fiquei abestalhado.  Ela passou a palavra para ele.  Espantado, escutei o relato do tesoureiro do IPEG, cara a cara com ele.

O velho senhor disse que havia um assaltante muito mau, um sujeito grande e forte, com uma expressão de ódio, certamente um sádico, que o espancara sem nenhum motivo.   Ele só não fora morto por esse bandido, porque um comparsa do bando de assaltantes, talvez chefe da quadrilha, ficara penalizado e intercedera, livrando-o do brutamontes.

Aldo olhou para o amigo da avó e depois para mim.  Adivinhou o que estava se passando.  Troquei uma olhada de cumplicidade com ele.  Que fazer? Temia ser reconhecido.  Interpelei o visitante.  “Puxa vida, o senhor passou um sufoco, hem?”  Era a forma de eu tentar saber se ele havia me reconhecido.  “Ah! Foi, meu filho.  Você nem imagina”, respondeu.  “Esse bandido era mau mesmo, né?”, falei.  Ele concordou comigo. Falou horrores do bandido e me deixou tranquilo.  Pelo jeito como falava comigo, não me havia reconhecido.  Na verdade, nem ele a mim, nem eu a ele.

A avó do Aldo virou-se para mim e perguntou se eu não havia gostado da comida.  Aí me dei conta de que não havia tocado no prato.  Fiquei embaraçado.  Meti o garfo no prato, levei a comida à boca e mastiguei pela primeira vez.  “A comida está muito gostosa”, respondi, sem conseguir sentir-lhe o sabor.  “É que foi tão impressionante essa história, que eu nem me lembrei de comer”, acrescentei, soltando a respiração e relaxando finalmente.

Relendo, agora, o que acabei de escrever, fico na dúvida se isso de fato aconteceu.

Notas:

[1] Iúri Xavier Pereira morreu na luta contra a ditadura.

[2] Luiz José da Cunha morreu na luta contra a ditadura.

[3] Marco Antonio Brás de Carvalho morreu na luta contra a ditadura.

[4] Virgílio Gomes da Silva morreu na luta contra a ditadura.

[5] Aldo Sá Brito morreu na luta contra a ditadura.

Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996)