Resenha: O Alfaiate de Ulm, de Lucio Magri

AlfaiateA história do movimento operário internacional e do pensamento marxista no século XX, a partir da Revolução Russa de 1917, foi talvez a maior epopeia da História humana. Por quase 80 anos, milhares de homens, de diversas nacionalidades e de todas as partes do mundo, deram o melhor de suas forças (e, em muitos casos, suas vidas) em prol da causa de transformação da sociedade.

Organizados em partidos com um programa, funcionamento interno e ligações internacionais, os comunistas estiveram presentes nos principais eventos do século, organizando a resistência dos de baixo contra as forças destrutivas do capital. Pegando em armas, ajudando a consolidar conquistas democráticas nos marcos do capitalismo, empreendendo um trabalho pedagógico de conscientização e organização popular que alcançava milhões de seres humanos, mas também errando, e pagando caro por esses erros, a epopeia comunista moldou toda a história do século passado.

Hoje, essa história rica, contraditória e repleta de lições, mas derrotada, é vitima do esquecimento intencional por parte da História oficial. O comunismo é descartado como uma utopia irracional, reduzido à caricatura grotesca do totalitarismo stalinista, e seus fundamentos teóricos, baseados na compreensão concreta da dinâmica do sistema capitalista e no antagonismo de classe, são vistos como uma velharia que nada têm a dizer sobre a moderna sociedade. Bertolt Brecht, grande poeta, militante e observador social alemão, certa vez escreveu um poema que serve de resposta a esse tipo de pensamento: O alfaiate de Ulm, a história de um artesão da Idade Média que tenta construir um aparelho que permita ao homem voar. O aparelho falha, e o bispo da cidade anuncia triunfante que esse fracasso é a prova conclusiva que o homem jamais voará. Como todos sabem, apesar de todos os percalços, o homem finalmente conseguiu voar.

Lucio Magri, dirigente comunista da Itália, escolhe justamente tal título para seu livro, que trata de uma pequena parte da grande epopéia comunista: a história do Partido Comunista Italiano (PCI), por várias décadas o maior partido comunista do Ocidente. Ler esse livro é ter diante dos olhos um quadro vivo, rico e complexo da história e das opções políticas de uma grande organização, que mantinha em sua perspectiva teórica a revolução social, mas operava em um contexto social e geopolítico que limitava sua ação e restringia seu potencial.

É importante dizer que Magri não conta toda a história do PCI. Como ele mesmo coloca na introdução, a sua proposta é contar a história a partir do momento em que se torna militante e entra no partido, em meados dos anos 1950. A história pregressa do partido, seus anos de formação e as duras condições de funcionamento durante o período fascista, são tratados muito rapidamente. O capítulo primeiro, chamado “A Herança”, é dividido em duas partes: “O fardo do homem comunista” discute, a partir das lutas operárias e das controvérsias entre os revolucionários do século 19, a formação de uma identidade comunista, plasmada tanto por convicções teóricas quanto pelas contradições vividas no seio do movimento real, chegando até o período do terror stalinista. Ai está uma primeira limitação da obra de Magri: ele trata a repressão da burocracia soviética como “erros” da direção do partido bolchevique, erros graves, por certo, que produziram consequências desastrosas, mas poderiam ser evitados, mas não as vê como resultado da luta de uma camada social, a burocracia, para manter seus privilégios nascidos do estrangulamento da revolução de Outubro. A incapacidade de reconhecer o caráter de classe da degeneração da União Soviética estaria na origem dos principais erros teóricos e práticos do movimento comunista.

A segunda parte trata do que o autor chama de “Genoma de Gramsci”, ou seja, a importância que a obra teórica do revolucionário Antonio Gramsci, descoberta depois da II Guerra Mundial, teria para a construção da identidade do PCI. Vale lembrar que Gramsci foi o primeiro pensador marxista a refletir sobre e a elaborar uma teoria da ruptura revolucionária nos países do Ocidente. A esse respeito, ele discutiu a relativa autonomia da “superestrutura” política em relação à base econômica, e a importância de construção de uma hegemonia do interior da “sociedade civil”. De importância capital também é sua concepção do partido revolucionário como “intelectual coletivo”, ou seja, uma organização capaz de educar e formar as massas no exercício da própria autonomia e promotor de uma reforma cultural e moral. Sobre esse último aspecto do pensamento gramsciniano é significativo que Magri reconheça que o PCI tal como surgiu da II Guerra (o “partido novo” de Togliatti) foi incapaz de se transformar. Ele cita o próprio Togliatti, que pouco antes de sua morte admitiu que “nós, comunistas italianos, temos uma dívida com Antonio Gramsci: nós construímos largamente sobre ele nossa identidade e nossa estratégia, mas, para isso, o reduzimos a nossa medida, à necessidade de nossa política, sacrificando o que ele pensava, que estava ‘muito além’”.

Para Magri, o momento fundador da identidade particular do PCI foi a chamada “Viragem de Salerno”. Quase ao fim da guerra mundial, Mussolini havia sido deposto, mas o poder ainda estava nas mãos do rei e de apoiadores do fascismo. Desenvolvia-se uma resistência armada, impulsionada por católicos, socialistas e comunistas, mas não havia uma unidade entre eles a respeito de uma futura forma de governo, nem um programa comum. Os alemães invadiram o norte da Itália e criaram uma república fantoche com Mussolini à frente. Preparava-se o desembarque das tropas aliadas para ocupar o país. Togliatti chega à Itália, após um exílio de décadas, e propõe ao partido e às outras forças de resistência adiar a questão da monarquia para um referendo depois da guerra, e união de todas as forças antifascistas para derrotar os invasores e libertar o país.

Para além das questões imediatas, essa orientação do PCI serviu para consolidar, nas décadas seguintes, sua perspectiva estratégica. Seria importante reconhecer também as determinações advindas da correlação de forças mundial e as orientações vindas da União Soviética, que mantinha uma influência decisiva sobre a linha política dos diferentes PCs (fato que Magri dá pouca importância). Os acordos de Stalin com as potências ocidentais dividiam o mundo em zonas de influência, reservando os países da Europa Ocidental para o capitalismo. Nessa zona, a radicalização da resistência ao nazi-fascismo (muitas vezes, liderada por comunistas) era desencorajado, e seus objetivos políticos eram limitados à “conquista da democracia”. É indubitável que Togliatti, que se formou no aparelho da Internacional Comunista stalinizada, tenha absorvido completamente essa concepção, que relegava a revolução social a um futuro distante. Fiel a essa orientação, o PCI após a derrota do fascismo se compromete com a criação de uma democracia burguesa, desarmando a resistência partisana e empenhando-se em alianças com as forças capitalistas.

O PCI que emergiu após a guerra é resultado dessas opções estratégicas e limitações impostas pela geopolítica mundial: um partido que ganhou enorme prestígio por seu papel na resistência, consolidando-se como um partido de massas, comprometido com as causas populares e com os interesses materiais da classe operária. No entanto, limitou-se a si mesmo ao fixar seu objetivo com a conquista da democracia dentro dos marcos do capitalismo. A isso, acrescente-se que a configuração política da guerra fria, com a OTAN, também impunha uma ameaça permanente de intervenção militar contra qualquer país onde estourasse uma revolução social. Estabelecido um limite além do qual não queria ultrapassar (ou, depois de um certo período, não podia), o PCI no entanto esforçou-se para também ser coerente com sua herança comunista e se constituir como um partido das massas populares. O trabalho pedagógico e organizativo desenvolvido por ele nos anos 1950 foi de uma importância enorme para a politização de milhares de trabalhadores. Ele estava ramificado em centenas de milhares de pequenas organizações locais, que realizavam desde obras de alfabetização e educação política, até criação de cooperativas, sindicatos rurais, a luta contra as práticas mais primitivas de exploração do trabalho herdadas do período fascista (ainda profundamente arraigadas, em particular no sul mais pobre e menos desenvolvido), até a gestão de municipalidades e a aprovação de uma constituição social, uma das mais avançadas da Europa.

Magri analisa com muita lucidez toda a política do partido durante o período que vai dos anos 1950 até o seu fim em 1991, vendo os acertos e os erros que praticou dentro dessa perspectiva estratégica. Interessante é ver como o PCI, embora mantendo uma retórica internacionalista e de simpatia com os movimentos de libertação do 3o Mundo, aos poucos foi se afastando de um internacionalismo ativo, abstendo-se de intervir nos eventos da União Soviética e dos partidos comunistas de outros países. Sua abordagem cada vez mais centrada na realidade nacional estará na raiz dos muitos erros que desembocarão no seu fim, apesar de que, como o próprio Magri reconhece, a partir dos eventos de 1968 se tornava cada vez mais necessária, e possível, uma articulação da esquerda europeia, que dialogasse com os novos movimentos, e estabelecesse um programa comum contra o avanço do capital.

A análise do autor não se centra apenas na ação subjetiva dos atores de sua história, mas se preocupa em acompanhar as mudanças econômicas e sociais, inclusive culturais, pelas quais passava o capitalismo europeu e mundial, como pano de fundo para as escolhas feitas pelo partido e suas limitações. As transformações do sistema capitalista a partir dos anos 1970, e suas consequências no mundo do trabalho (reorganização no espaço de produção, a difusão do consumismo, a desindustrialização da Europa e o crescimento do setor de serviços, a decadência do campo soviético etc.) são dados objetivos que precisavam ser levados em conta na avaliação das possibilidades e limites da ação de um partido revolucionário. Magri reconhece que o principal erro do PCI foi não ter reconhecido e avaliado essas transformações na elaboração de sua prática.

A difusão de novos movimentos (ambientalistas, da juventude, mulheres etc.) que não tinham mais uma referência identitária direta no mundo do trabalho tornava necessário um diálogo com eles e uma rediscussão das perspectivas estratégicas do partido. O PCI, infelizmente, como boa parte da esquerda tradicional, possuía uma profunda desconfiança par com esses movimentos, e manteve um distanciamento hostil. Tal descolamento, no final dos anos 1970, também começou a ocorrer na base tradicional do partido. As grandes lutas operárias dessa década, iniciadas no que ficou conhecido como “outono quente”, foram apoiadas pelo PCI, mas ele não buscou incentivá-las, nem generalizar seu exemplo para outros setores. Aliás, há muito tempo que já havia se estabelecido uma “divisão de tarefas” entre o PCI e a central sindical CGIL, onde o primeiro se concentrava na “política” (eleições parlamentares e de municípios) e a segunda em questões sindicais, e um não se metia no “domínio” do outro. O partido, então, não quis dar um sentido político a esse movimento grevista na Itália, que estava em sintonia, embora com atraso, ao movimento geral da classe trabalhadora européia, que a partir de 1968, protagonizou lutas heróicas na França, Inglaterra, Portugal, Grécia etc.

A reestruturação capitalista, iniciada no início dos anos 1980 (mas, como o autor aponta corretamente, suas principais características já apareciam de forma embrionária uma década antes), foi tanto uma reação contra o poder crescente dos trabalhadores quanto uma resposta dos capitalistas à queda da produtividade e da taxa de lucro a nível mundial. O seu receituário, que ficou conhecido como neoliberalismo, inaugurava uma nova etapa do sistema capitalista, com ataques sistemáticos às conquistas operárias das últimas décadas, e exigia uma reelaboração da estratégia socialista. No bojo dessas mudanças, talvez fosse inevitável um enfraquecimento dos partidos de esquerda, traduzido na diminuição do número de militantes e de sua influência, reflexo dos ataques às condições de vida e organização dos trabalhadores. Mas tal dano seria minimizado se o partido soubesse reconhecer a nova etapa, estudá-la, aprender as lições do passado e preparar as bases para uma retomada posterior, baseada na centralidade da classe trabalhadora, mas levando em consideração os novos sujeitos da luta social. O PCI, infelizmente, foi incapaz de realizar esse processo de conservação do patrimônio passado, e fechou os olhos para a realidade em transformação.

A estratégia do PCI centrava-se na possibilidade de, em conjunto com os socialistas, chegar ao governo (o chamado “compromisso histórico”) e aplicar os pontos mais avançados da constituição, aprovados mas nunca implementados. Por várias décadas, os governos da Democracia Cristã se obstinaram em impor um veto aos comunistas em qualquer coalizão. Na década de 1970, o crescimento eleitoral do PCI, por um lado, e a perda de apoio dos demais partidos, por outro, levou a uma situação onde era impossível se formar um governo estável sem os comunistas. Mas todos os partidos, inclusive os socialistas relutavam em aceitar uma coalizão. O PCI, então, passa a uma lenta aproximação com o empresariado italiano e com as forças de centro, chegando até mesmo a realizar esforços para uma coalizão com a Democracia Cristã, apresentando-se como uma força “responsável”.

No final da década de 1980, com a ofensiva mundial do capital e a crise do stalinismo, a direção do PCI, liderada por Achille Ochetto, rapidamente chega à conclusão de que se deveria abandonar a identidade comunista. No que Magri corretamente critica como “culto do novo”, para essa direção o método marxista e a história do movimento comunista não mais eram relevantes para se acompanhar as mudanças trazidas pela reestruturação capitalista, e o PCI deveria se esforçar por ser um partido “moderno”, afinado com as “novidades” trazidas pelas mudanças de comportamento e identidade.

Chama atenção a quase unanimidade que a proposta de Ochetto encontrou dentro do partido. A princípio, houve muita revolta entre os militantes mais velhos, em especial os que participaram na resistência ao nazifascismo, mas só Magri votou contra na direção nacional. Apesar de, para o congresso que decidiria a questão da mudança do nome, haver se formado uma plataforma de oposição, também não houve uma grande resistência entre as fileiras do partido. Isso não se explica apenas por uma suposta “disciplina de ferro” existente em partidos stalinistas. A partir dos anos 1960, o PCI possuía uma relativa abertura e tolerância dentro de suas fileiras, e a leitura de autores marxistas “heterodoxos” era incentivada. Essa aceitação encontra sua explicação no fato que, há décadas, a militância do PCI era educada e formada na visão de que a “República Social” italiana era a conquista máxima a que poderiam almejar, e que deveriam trabalhar dentro dela, preservá-las das forças da reação e não ir além. O descolamento gradual do PCI em relação às lutas da nova geração é mostrado pela composição etária do partido em sua fase final: De um universo de 1,4 milhão de filiados, apenas 1,9% possuíam menos de 25 anos, inferior aos que tinham mais de 80 anos. O número dos que tinham menos de 30 anos era inferior aos que tinham mais de 70 anos. Magri chega à conclusão que “a relação com as lutas e focos de conflitos reais parece desgastada ou delegada ao sindicato e aos movimentos (pacifista ou ambientalista), a cuja vida cotidiana o partido é relativamente alheio” (pg. 406).

Nesse quadro, e não podendo e não sabendo interpretar a crise do bloco soviético em um sentido marxista, a proposta de Ochetto de fundar um novo partido reformista, para o qual confluiriam outras forças políticas, fazia todo o sentido para essa militância que perdia sintonia com as lutas reais da classe trabalhadora e não tinha uma perspectiva clara para lhe dar. Em 1991, o PCI muda seu nome para Partido Democrático da Esquerda. Uma pequena parte, não aceitando a decisão, formou o Partido da Refundação Comunista.

Uma das partes mais interessantes do livro é o apêndice ao seu final, um documento escrito por Magri para a discussão no congresso de mudança do nome. Sabendo que a discussão não poderia se centrar apenas na herança do passado, ele buscou nesse documento apresentar vários elementos em torno dos quais se poderia articular uma nova identidade que justificasse a manutenção da perspectiva de ruptura revolucionária. Estudando as características do que ele chama de “sociedade pós-industrial”, o autor aponta corretamente a questão ambiental, os problemas sociais oriundos do consumismo e do hedonismo desenfreados, o aumento da pobreza não mais como um efeito, mas como uma tendência do atual modelo de desenvolvimento, as novas formas de trabalho, o esvaziamento e a crescente irrelevância das instituições “democráticas” (já que os centros de decisão se deslocam para grandes organismos financeiros internacionais), e, por fim, a degeneração e burocratização dos partidos, todos evidências de “um capitalismo que procura sobreviver às razões históricas que lhe deram origem e guiar com seus valores e suas regras uma época futura” (pg 373).

Numa crítica premonitória ao que desde aquela época era chamado de “movimentismo” (ou seja, a ideia que pequenas ações locais e descentralizadas com objetivos pontuais poderiam criar uma mudança de mentalidade que levaria a uma nova sociedade), Magri irá reivindicar o valor de um projeto coletivo de mudanças e o internacionalismo ativos. Ao mesmo tempo que reivindica o socialismo como premissa para a verdadeira democracia, ele também defende a construção de uma hegemonia política entre os subalternos para fazer frente ao poder cada vez mais centralizado do capitalismo internacional: “A democracia não vive sem um soberano coletivo, e esse soberano coletivo não pode existir na forma de uma multidão atomizada, de uma soma confusa de impulsos e culturas heterogêneas. A fragmentação não é pluralismo, é uniformidade camuflada” (pg. 399, itálico nosso).

Para concluir, para todos aqueles militantes e ativistas comprometidos seriamente com as lutas dos de baixo, esse livro é uma fonte rica em interrogações, sugestões e quem sabe algumas respostas, mas que só serão válidas se estiverem ligadas à práxis pela mudança da sociedade. E, como a metáfora do título do livro sugere, não é porque um projeto grandioso fracassou uma vez, que ele não poderá triunfar no futuro, se seus defensores souberem incorporar as lições desse fracasso.