Documento assinado por 80 entidades de camponeses, povos indígenas e tradicionais encaminhado ao governo critica 17 pontos de projeto de lei, entre eles a impossibilidade de negar acesso a seus conhecimentos e restrições à repartição de benefícios. ISA também apoia iniciativa
Um conjunto inédito de 80 movimentos sociais, organizações e redes da sociedade civil de todo Brasil, entre eles o ISA, divulgou, na sexta (27/2), uma carta condenando duramente o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 02/2015 e a atuação do governo federal nas negociações sobre a proposta.
Aprovado na Câmara no dia 10/2, o PLC tramita no Senado em regime de urgência e pretende facilitar o acesso de pesquisadores e indústrias aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e à agrobiodiversidade.
A carta foi entregue ao secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Francisco Gaetani. Representantes de agricultores familiares, povos indígenas e tradicionais exigiram que sejam ouvidos sobre o PL, que ele seja modificado e que seja retirado o regime de urgência.
“Denunciamos o amplo favorecimento dos setores farmacêutico, de cosméticos e do agronegócio (principalmente sementeiros), a ponto de ameaçar a biodiversidade, os conhecimentos tradicionais associados e programas estruturantes para a segurança e soberania alimentares”, afirma o texto entregue ao MMA.
Assinam o documento o ISA, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coordenação Nacional Quilombola (Conaq), o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Via Campesina e Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS). No dia 20/2, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) também publicou uma nota em que critica o PL .
“Nós fomos alijados do processo. Ao pretender regulamentar o acesso ao patrimônio genético, a proposta acaba por legalizar a biopirataria”, criticou Marciano Toledo da Silva, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
“Ou o governo nos respeita enquanto povos, enquanto essa diversidade que o Brasil tem, ou nós paramos o Brasil em defesa dos nossos direitos. Esse governo não terá paz enquanto nossos direitos não forem respeitados”, advertiu Puyr Tembé, da Apib.
Bastidores
Na reunião, Gaetani voltou a admitir que o projeto tem problemas e que, em sua discussão, não houve participação de representantes de agricultores familiares, povos indígenas e tradicionais “na intensidade demandada”. Ele avaliou que houve desrespeito aos trâmites normais do projeto na Câmara – não foi criada uma comissão para analisá-lo nem designado oficialmente um relator – e atribuiu a isso a redução do espaço de debate sobre a proposta. Gaetani informou que o regime de urgência foi imposto pelo Palácio do Planalto, e não pelo MMA, a partir de uma “demanda do setor privado”.
A reunião foi a última de uma série realizada pelo MMA, ao longo da semana, com os representantes dessas populações sob a justificativa de ouvi-las sobre a regulamentação do PL.
Nos bastidores, o governo trabalha para aprová-lo o mais rápido possível e sem alterações, conforme pedido feito pela ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, ao presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), também na semana passada. Se for aprovado sem mudanças, o projeto segue diretamente à sanção presidencial. Caso sejam feitas modificações, ele volta à Câmara.
Na reunião na sexta, Gaetani negou a articulação e comentou que haveria espaço para “aprimoramentos” na proposta. “Os senadores têm toda a liberdade para discutir alterações”, disse. O secretário reconheceu fragilidades na articulação política do governo na tramitação na Câmara e que o Planalto ainda não definiu uma estratégia política de atuação no Senado. “Ainda não sabemos como abordar os parlamentares”, afirmou.
Protocolo de Nagoya
Dois pontos principais do texto preocupam o MMA: a possibilidade de que o Ministério da Agricultura e não apenas o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) tenha poder fiscalizatório sobre o patrimônio genético; e a possível incompatibilidade do PL com o Protocolo de Nagoya, tratado internacional que rege o assunto ainda não ratificado pelo Brasil.
Numa coletiva no final da tarde de sexta, Gaetani sugeriu que um dispositivo do projeto de fato pode contradizer o protocolo. De acordo com a redação aprovada na Câmara, empresas que desenvolveram produtos com base no patrimônio genético antes da entrada em vigor da nova lei estariam isentas da repartição de benefícios prevista em acordos internacionais dos quais o Brasil seja parte. Na interpretação do MMA, essa isenção deveria valer apenas para produtos da agricultura e alimentação.
O Brasil foi um dos principais apoiadores do Protocolo. Aprovar uma lei que o contradiz significaria ampliar o constrangimento diplomático já existente sobre o tema.
Esse ponto transformou-se numa bandeira dos ruralistas na Câmara sob a justificativa de evitar que produtores rurais fossem obrigados à pagar royaltie sobre variedades de soja e milho, por exemplo, desenvolvidos em outros países. Com o forte lobby da indústria farmacêutica e de cosméticos, no entanto, a redação final acabou mantendo essa isenção para o uso de todo tipo de conhecimento tradicional.
Original: Instituto Socioambiental – ISA, 03-03-2015
Fonte: IHU, 05/03/2015
CARTA CIRCULAR ABERTA
Brasília, 27 de fevereiro de 2015
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POVOS INDÍGENAS, POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AGRICULTORES FAMILIARES REPUDIAM PROJETO DE LEI QUE VENDE E DESTRÓI A BIODIVERSIDADE NACIONAL
Os Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e os Agricultores Familiares do Brasil, representados por suas entidades e organizações parceiras
abaixo assinadas, vêm expor o seu posicionamento sobre o Projeto de Lei n.º 7.735/2014 (atual PLC n.º 02/2015), que pretende regulamentar o acesso e a expl
oração econômica da biodiversidade e da agrobiodiversidade brasileiras, bem como dos conhecimentos tradicionais associados. De início, registramos que os Povos e Comunidades acima mencionados estão plenamente cientes da atual ofensiva verificada no Brasil contra seus direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal, pela legislação ordinária e por Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil, contexto no qual se insere o PL n.º 7.735/2014, apresentado ao Congresso Nacional pelo governo federal em regime de urgência.
Em razão desse cenário, que ameaça a própria existência dos Povos e Comunidades Tradicionais, informamos que as entidades representativas encontram-se unidas e mobilizadas com a determinação de lutar conjuntamente na defesa de seus direitos historicamente conquistados, os quais constituem a base da soberania e democracia constitucional do País.
Especificamente em relação ao PL n.º 7.735/2014, que pretende anular e restringir
nossos direitos, repudiamos a decisão deliberada do Poder Executivo de nos excluir do processo de sua elaboração, sem qualquer debate ou consulta, em violação à Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), à Convenção da Diversidade Biológica (CDB), ao Tratado Internacional dos Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura/FAO (TIRFAA) e à Constituição Federal.
Em contraste a isso, denunciamos o amplo favorecimento dos setores farmacêutico, de cosméticos e do agronegócio (principalmente sementeiros), a ponto de ameaçar a biodiversidade, os conhecimentos tradicionais associados e programas estruturantes para a segurança e soberania alimentares, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com a possibilidade inclusive de legalização da biopirataria.
Tal cenário, reconhecido pelo próprio Governo, resultou em grave desequilíbrio no conteúdo do Projeto de Lei em questão. Além de anistiar as irregularidades e violações históricas e excluir qualquer fiscalização do Poder Público sobre as atividades de acesso e exploração econômica, o PL n.º 7.735/2014 viola direitos já consagrados na legislação brasileira, o que pode ser claramente verificado nos seguintes pontos principais:
(1) Em relação ao acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais:
a) Deixa de prever e inviabiliza a negativa de consentimento prévio dos povos e comunidades tradicionais;
b) Flexibiliza a comprovação do consentimento livre, prévio e informado, em detrimento da proteção de conhecimentos coletivos;
c) Dispensa o consentimento livre, prévio e informado, para o acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional associado relacionado à alimentação e agricultura; e
d) Permite que empresas nacionais e internacionais acessem e explorem, sem controle e fiscalização, o patrimônio genético brasileiro e os conhecimentos tradicionais associados, permitindo, por exemplo, o acesso de empresas estrangeiras a bancos de sementes.
(2) No que tange à repartição de benefícios:
a) Prevê que apenas produtos acabados serão objeto de repartição de benefícios,
excluindo os produtos intermediários;
b) Restringe a repartição de benefícios aos casos em que o patrimônio genético ou
conhecimento tradicional for qualificado como elemento principal de agregação de valor ao produto;
c) Isenta de repartição de benefícios todos os inúmeros casos de acessos realizados anteriormente ao ano de 2000, e mantém explorações econômicas até hoje;
d) Condiciona a repartição de benefícios apenas aos produtos previstos em Lista
de Classificação a ser elaborada em ato conjunto por seis Ministérios;
e) Estabelece teto, ao invés de base, para o valor a ser pago a título de repartição
de benefícios;
f) Deixa a critério exclusivo das empresas nacionais e internacionais a escolha da modalidade de repartição de benefícios nos casos de acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional de origem não identificável;
g) Isenta microempresas, empresas de pequeno porte e micro empreendedores individuais de repartir benefícios; e
h) Exclui de repartição de benefícios a exploração econômica do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado relacionado à alimentação e agricultura.
(3) No que se refere às definições:
a) Substitui o termo “povos” por “população” ao tratar de povos indígenas;
b) Substitui o termo “agricultor familiar” por “agricultor tradicional”, em afronta à Lei 11.326/2006;
c) Descaracteriza a definição de “sementes crioulas” contida na Lei n.º 10.711/2003;
d) Deixa de prever que o atestado de regularidade de acesso seja prévio
e com debates participativos sobre seus termos ao início das atividades; e
e) Enfim, adotou conceitos à revelia dos detentores dos conhecimentos tradicionais.
Diante do exposto, os Povos Indígenas, os Povos e Comunidades Tradicionais e os
Agricultores Familiares do Brasil exigem o comprometimento do Governo Federal com a reversão do cenário acima denunciado, mediante a correção dos graves equívocos contidos no Projeto de Lei n.º 7.735/2014, de forma a assegurar o respeito e a efetivação dos seus direitos legal e constitucionalmente garantidos.
Declaramos que não mais admitiremos a postura antidemocrática e o engajamento político do Governo Federal, associado aos interesses empresariais e outros, em direção à expropriação da biodiversidade e da agrobiodiversidade brasileiras e dos conhecimentos tradicionais associados.
Reafirmamos, por fim, a nossa determinação de continuar unidos, mobilizados e dispostos a manter-nos em permanente luta na defesa de justiça e de nossos direitos
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Assinam a presente carta
:
1. Amigos da Terra Brasil
2. Articulação do Semiárido–ASA Brasil
3. Articulação do Seminário–ASA Paraíba
4. Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo-APOINME
5. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil-APIB
6. Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste-ARPINSUDESTE
7. Articulação dos Povos Indígenas do Sul-ARPINSUL
8. Articulação Nacional de Agroecologia–ANA
9. Articulação Pacari
10. Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses
11. Articulação Rosalino de Povos e Comunidades Tradicionais do Norte de Minas
12. AS-PTA–Agricultura Familiar e Agroecologia
13. Associação Agroecológica TIJUPÁ
14. Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica
15. Associação Brasileira de Agroecologia
16. Associação Brasileira de Estudantes de Engenharia Florestal-ABEEF
17. Associação Brasileira de Saúde Coletiva–ABRASCO
18. Associação Cedro-Centro de Estudos e Discussões Romani
19. Associação das Mulheres Organizadas do Vale do Jequitinhonha
20. Associação das Panhadoras de Flores
21. Associação de Agricultura Biodinâmica do Sul
22. Associação de Comunidades da Diáspora Africana por Direito à Alimentação-Rede Kodya
23. Associação de Mulheres Catadoras de Mangabas
24. Associação dos Agricultores Guardiões da Agrobiodiversidade de Tenente Portela-AGABIO
25. Associação dos Retireiros do Araguaia-ARA
26. Associação dos Trabalhadores Assalariados Rurais de Minas Gerais–ADERE/MG
27. Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural–AGAPAN
28. Associação Nacional Ciganas Calins
29. Associação Nacional da Agricultura Camponesa
30. Associação Nacional da Cultura Bantu–ACBANTU
31. Associação para a Pequena Agricultura no Tocantins–APA-TO
32. Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia–AOPA;
33. Bionatur
34. Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida
35. Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas–CAA-NM
36. Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA)
37. Centro Ecológico
38. Comissão Guarany Ivyrupa
39. Comitê Chico Mendes (CCN)
40. Conselho do Povo Terena
41. Conselho dos Povos Indígenas de Mato Grosso do Sul
42. Conselho Indigenista Missionário-CIMI
43. Conselho Nacional das Populações Extrativistas-CNS
44. Cooperativa Coppabacs–AL
45. Cooperativa Grande Sertão
46. Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira-COIAB
47. Coordenação Nacional Quilombola-CONAQ
48. Entidade Nacional dos Estudantes de Biologia
49. FASE–Solidariedade e Educação
50. Fórum Brasileiro de Segurança e Sobera
nia Alimentar e Nutricional
51. Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social
52. Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos