por Rodolfo Vianna
Ocorreu no último dia seis de maio em Salvador, Bahia, mais uma etapa do ciclo de debates “Se a cidade fosse nossa”. Promovidas pela Fundação Lauro Campos, as atividades têm como objetivo incentivar as discussões e dar subsídios à formulação dos programas municipais a serem apresentados pelo PSOL nas eleições deste ano. Na etaparealizada na última sexta-feira, o tema foi “Cidades Negras: racismo, territorialidade e identidades no contexto urbano” e teve o apoio do Setorial de Negros e Negras e do diretório estadual do PSOL-BA.
A mesa foi composta por Dennis de Oliveira, professor da USP e militante da Rede Quilombação; pelo advogado e professor da UFBA Samuel Vida e pela professora da UESF, Linesseh Ramos. Os trabalhos tiveram a coordenação de Fábio Nogueira, pré-candidato à prefeitura de Salvador neste ano. Militantes de nove estados brasileiros participaram do debate, assim como o vereador de Salvador Hilton Coelho e o candidato ao senado em 2014, o professor Hamilton Assis.
Primeiro a usar a palavra, Dennis de Oliveira frisou a necessidade de compreender os três aspectos centrais da constituição do Estado brasileiro. O primeiro, é o de ser um Estado voltado para a manutenção da concentração de renda e do patrimônio; segundo, é um Estado voltado a ter uma concepção restrita de cidadania e, terceiro, é um Estado que se realiza a partir da violência como prática política central, na qual a violência não é episódica. Apesar de vivermos em uma sociedade com um regime democrático institucional, Dennis de Oliveira lembrou que nas periferias ainda existe uma prática característica dos regimes autoritários: “você tem invasões de domicílios sem mandato de busca, você tem execuções extrajudiciais, prisões ilegais e tortura nas delegacias. Isso significa o quê? Isso significa que você tem ainda o contexto de um regime autoritário”.
Retomando as três características do Estado brasileiro, Dennis de Oliveira entende que o “racismo é a ideologia que vai estar de forma transversal nesses três elementos. O racismo vai definir quem tem e quem não tem patrimônio e renda; o racismo que define quem é e quem não é cidadão e é o racismo que define quem é o autor e quem é a vítima da violência. Ele vai ser o elemento que vai justificar essa crivagem que acontece pela lógica do Estado brasileiro”. Esses elementos acabam por colocar a população negra na “franja da sociedade”, e essa posição acarreta aos negros e negras a perda do direito à cidade. “O conceito de periferia tem uma dimensão espacial, mas também uma dimensão simbólica: o que é periferia? Periferia é estar excluído do centro da política”, atestou o professor, “e essa periferia é para a gente a reconstrução simbólica da senzala”.
Na sequência, o professor Samuel Vida fez a sua contribuição. Para ele, há três questões importantes para se abordar o tema das “cidades”, como também para discutir o país e a sociedade brasileira. O primeiro é o “racismo institucional”, que apesar de ter sido formulado há quase 50 anos pelos jovens ativistas dos Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton, na obra “Black Power: The Politics of Liberation”, “vem enfrentando um rebaixamento conceitual e interpretativo em todo o mundo, inclusive no Brasil, que é o de dizer que o racismo institucional é o fracasso do provimento de serviços equânimes do ponto de vista racial e étnico pelos organismos de serviços públicos e privados”. Essa compreensão para o professor é equivocada por vários aspectos, dos quais ele destacou dois: “primeiro, ao falar em fracasso presume que essas instituições são neutras e estão aptas a operar políticas de diversidade, o que é um grande equívoco: essas instituições nunca foram concebidas para operar políticas de diferença. Segundo, pressiona o enfrentamento do racismo institucional em torno dos funcionários, dos servidores” sendo que a solução muitas vezes proposta restringe-se à programas de reeducação de servidores. “Não é esta a questão principal”, afirma Samuel Vida.
O segundo aspecto é 0 da necessidade de se dialogar mais com os conceitos de “biopolítica” e “biopoder”. “Há a necessidade de se aprofundar o entendimento sobre o porquê que algumas vidas, alguns corpos, algumas culturas persistem como vulneráveis”. E, como terceiro aspecto, a importância de se dialogar com o conceito de “Estado de exceção”, com o reconhecimento de que, para além das experiências formais de ditaduras ou de autoritarismo, há uma funcionalidade excludente dirigida focalmente contra certos setores “e que foi amplamente acolhida por todas as experiências de gestão de todos os matizes, inclusive as dos matizes de esquerda, e que se traduz numa normalização da exceção”. Para Samuel Vida, “falar de racismo institucional é tentar entender como esses mecanismos operam de formas distintas e com várias roupagens, podendo ocorrer, inclusive, em espaços governados e administrados por pessoas negras”.
Encerrando as contribuições dos convidados da mesa, a professora Linesseh Ramos centrou sua fala na luta antiproibicionista que desenvolve, especialmente como repercute para as mulheres negras. A política de guerra à drogas tem um marco histórico no Brasil que coincide com uma política internacional de contenção de grupos que é o período da Lei Áurea, fator que é fundamental para compreender que a política da guerra à drogas “é uma política essencialmente racista”. A professora lembrou que muitas drogas, especialmente a maconha e alguns chás, tinham um papel simbólico e ritualístico na cultura negra, e por isso sofreram uma política de estigmatização e de construção de uma relação negativa ao uso feito pelos negros.
Lançando mão de dados do Ipea, Linesseh Ramos informou que o Brasil é o quinto país que mais encarcera mulheres negras, e o principal motivo para isso é a política de guerra às drogas, que serve de cobertura para a utilização do aparato repressivo do Estado de forma a violentar as mulheres negras, invadir seus espaços e matar seus filhos. “Muitos de nós, e falo de nós da esquerda em geral, inclusive muitos dos companheiros brancos, não assumem ou não podem assumir que fumam maconha por uma diversidade de estigmas, e não assumem também esse debate porque ele é colocado como um tabu. E, reparem, a gente trata na sociedade como um tabu uma política que mata jovens todos os dias”.
Continuando, a professora deixou claro que “o empoderamento da mulher negra é algo que não volta mais atrás: a questão de colocar que nós podemos assumir espaços de poder na academia, na política e na própria vida não volta mais atrás, e isso é fundamental na luta democrática”, e atestou: “o empoderamento das mulheres negras é fundamental à luta democrática. O racismo atua no sentido de manter a faxina ética. Não existe socialismo e liberdade se não tivermos o fim do racismo”.
Encerrada as falas da mesa, a palavra foi aberta aos participantes do evento que deram prosseguimento ao debate com diversas intervenções sobre o tema. Encerrada a discussão, todos foram convidados para a inauguração da nova sede do PSOL estadual da Bahia, já apelidada pela militância de “Casa Amarela”, que fica na Avenida Sete de Setembro, em frente ao antigo Hotel da Bahia, no bairro de Campo Grande.
Em breve a Fundação Lauro Campos disponibilizará o registro da atividade na integra.