“Direitos sociais em tempos de ajuste”: síntese do Coletivo de Conjuntura

por Rodolfo Vianna

 

     A segunda mesa da reunião do Coletivo de Conjuntura, que ocorreu na tarde do dia 20 de junho, foi dedicada ao tema “Direitos sociais em tempos de ajuste” e contou com a participação de Paulo Schier (Unibrasil/PR), Denise Lobato Gentil (IE-UFRJ), Bernadete Menezes (Intersindical), Eduardo Fagnani (IE-Unicamp) e a mediação de Gilberto Maringoni, coordenador da atividade.

     Iniciando o debate, Paulo Schier alertou que a leitura que faria seria diferente daquela realizada na mesa da manhã (veja a síntese do debate aqui) em relação às perspectivas jurídicas da nossa Constituição e do próprio Direito, uma vez que não se pode perder de vista que o Direito “é um espaço de luta, tanto no que diz respeito ao reconhecimento de direitos quanto à sua efetivação”. Sobre a Constituição de 1988, o professor ressaltou seu caráter “esquizofrênico”, uma vez que ela protege um grande número de direitos sociais ao mesmo tempo que também garante fundamentos orientados pelos valores da livre iniciativa. “Ela não é uma Constituição liberal, mas ao reconhecer a propriedade privada e ao atribuir à propriedade privada uma função social, ela está de certa forma assumindo um certo modelo de Estado Social quando ela se projeta para um modelo de capitalismo, que não é qualquer modelo de capitalismo”.

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     Nós temos duas Constituições, afirmou Paulo Schier, sendo aquela que declara os seus objetivos sociais mas, por outro lado, a que instaura “a organização institucional que parte da questão da organização fiscal, orçamentária e até mesmo a organização política do Estado, e que desmente esse comprometimento social”. E esse conflito acaba por ser um empecilho à efetivação dos direitos sociais existentes nela mesma, levando à “judicialização dos direitos sociais”, já que o Judiciário é instado a posicionar-se sobre a não-efetivação de determinados direitos que deveriam ser garantidos. Esse processo acaba por “elitizar” os direitos sociais porque, uma vez judicializados, acabam se efetivando individualmente para aquele que consegue determinada liminar, por exemplo, retirando verba que deveria auxiliar à universalização destes direitos. Citando pesquisas realizadas, Paulo Schier afirmou que na maior parte das demandas judiciais por direitos sociais há um corte sócio-econômico claro: elas se concentram em fatias da população mais abastadas e nos grandes centros urbanos.

     A proposta de emenda constitucional 241/2016, que traz o chamado “novo regime fiscal brasileiro”, e que praticamente congela o orçamento por 20 anos, tende a dificultar o processo de efetivação dos direitos sociais previstos na Constituição, na visão do professor, causando um “retrocesso em termos de direitos sociais no campo de políticas públicas”. O combate à não aprovação dessa PEC deve ser prioritário na luta da esquerda, porque “nós não podemos retroceder em termos de políticas públicas”, concluiu Paulo Schier.

     A atividade teve sequência com a participação de Denise Gentil, que informou que, a partir e 2011, houve um recuo planejado da intervenção estatal na economia, dando um maior espaço para o capital privado e havendo uma contenção do investimento público. Nos cinco anos do governo Dilma, em três houve uma taxa de crescimento negativo do investimento público, o que “representou um recuo enorme do Estado, o que puxa o investimento agregado (a soma dos investimentos públicos e privados) para baixo”. A professora lembrou ainda que no governo Dilma “o processo de privatização de infraestrutura foi brutal”, incluindo portos, aeroportos rodovias e o campo de Libra do pré-sal.
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     Na área de saúde a privatização também foi intensa, concretizada por meio das deduções e isenções oferecidas pelo Estado tanto para pessoas físicas quanto jurídicas. “Esses recursos que o governo abre mão do setor de saúde poderiam ser canalizados para o SUS”, e continuou, “a gente tira recursos que poderiam estar no setor de saúde pública e injeta no privado. Nós sustemos os planos de saúde”. O montante de desoneração somente no setor de saúde se intensificou a partir de 2011, quando foram na casa de R$ 13 bilhões, passando para R$19 bi em 2012, R$ 20 bi em 2013, R$ 23 bi em 2014 e alcançando a casa dos R$ 25 bilhões em 2015. “Mas o fato é o seguinte: quando você sucateia o setor de saúde, quando você nega à saúde pública num só ano R$ 25 bilhões, e deixa a população à míngua, você está dizendo o quê àquela população? Vá se socorrer no setor privado de saúde…”. E, para Denise Gentil, o mesmo processo acontece no setor da previdência pública: “a reforma da previdência não é um caso isolado, ela faz parte de um contexto de privatização e financeirização que vem sendo construído há um certo tempo e que se intensificou a partir de 2011”.

     O governo alardeia que há um déficit de R$ 85 bilhões de reais (2015), e “o tempo todo falando isso, as pessoas acreditam, não há quem ignore: as pessoas do governo acreditam, meus colegas da universidade, economistas, acreditam, o ser humano comum, que não entende nada de previdência, acredita nisso, porque é dito de uma forma tão massacrante que vira uma verdade insofismável”. E esse discurso acaba por estimular as pessoas a procurarem uma previdência complementar em algum banco, privado ou público. “Você compra um plano privado de saúde, você compra um plano privado de previdência… Assim, a renda das pessoas vai diminuindo cada vez mais. E ao invés do Estado ser o provedor de bens e de serviços públicos, que complementam a renda do trabalhador, o Estado desloca a renda dos cidadãos para os bancos”.

     Denise Gentil informou que essa dinâmica está sendo estudada atualmente por um coletivo de pesquisadores da UFRJ, que defendem a tese de que mesmo as políticas sociais – como a bolsa família – estão servindo de “colateral” (garantia) para a tomada de empréstimos nos bancos. “As pessoas hoje estão completamente endividadas, principalmente os funcionários públicos e os aposentados, que recebem crédito consignado, para sua própria sobrevivência”, uma vez que os serviços públicos estão completamente sucateados e há a necessidade de se recorrer à iniciativa privada para ter aquilo que deveria ser garantido pelo Estado.

     Encerrando, a pesquisadora revelou o tamanho das desonerações tributárias promovidas pelo governo, que somavam R$ 201 bilhões em 2011, R$ 227 bi em 2012 e R$ 282 bi em 2015 em valores atuais, e desses R$ 282 bilhões, R$ 157 bi foram em renúncias de receitas que iriam para a Seguridade Social, e sem a exigência de nenhuma contrapartida. E provocou: “vocês acham que é minimamente razoável um governo que abre mão deste patamar estratosférico de receitas pedir para ajustar do lado dos custos com reformas da Seguridade Social que vão punir a renda dos trabalhadores?”. E prosseguiu, lembrando do gasto do governo com os juros dos títulos da dívida, que em 2015 foi na casa de R$ 501 bilhões, beneficiando somente 70 mil pessoas, enquanto que todos os gastos com a Seguridade Social foram de R$ 380 bilhões, e beneficiou 28 milhões de famílias: “e o governo quer que a gente entenda que a reforma da hora é a da previdência, e não a da política monetária? Tá me tirando, né?”. Parafraseando o profeta Gentileza, que dizia que “gentileza gera gentileza”, Denise Gentil atestou que, no “no campo político, gentileza não gera gentileza. Toda essa gentileza do governo gerou o impeachment”.
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     A mesa teve sequência com a intervenção de Bernadete Menezes, da Intersindical, para quem “os direitos trabalhistas estão vinculados diretamente com a correlação de força das classes”, lembrando o contexto de ascensão da luta de classes no início do século XX e suas consequências na criação de leis trabalhistas, no Brasil e o mundo. “A CLT não é só um produto de Vargas”, disse, afirmando que não se pode esquecer das fortes mobilizações das camadas trabalhadoras no país nas décadas que antecederam sua promulgação. Mesmo as garantias previstas na Constituição de 1988 também são conquistas oriundas das lutas travadas durante a década de 1980 no país que, a despeito do contexto internacional de avanço do neoliberalismo, com figuras como Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (Reino Unido), representou ao Brasil o momento de reorganização da classe trabalhadora e o fortalecimento das entidades sindicais, havendo, inclusive, a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT).

     Entretanto, Bernadete Menezes alerta que vivemos um período de perda de direitos trabalhistas, relacionado à fragmentação e desarticulação das organizações que outrora foram fundamentais para conquistá-los. “Esse processo é global. Quem fica atrás com a sua mão de obra ‘cara’ está perdendo a disputa internacional. Há uma verdadeira corrida dos governos para atacar os direitos da classe trabalhadora, para diminuir o chamado ‘custo’ de cada país (‘custo Brasil’, ‘custo França’, ‘custo Espanha’ etc.) E em geral todos entram com a reforma da previdência, o aumento da jornada de trabalho, a diminuição do valor da hora-extra e do seguro-desemprego”.

     Sobre os desafios colocados pela atual conjuntura, Bernadete conclui que “nós estamos construindo um novo espaço, um novo momento de consolidação de frentes, porque o que construímos no passado está fragmentado. E nós estamos tentando à duras custas costurar novos espaços de luta que unifiquem a classe”, inclusive sendo necessário esquecer as fórmulas que cumpriram sua função histórica mas que se mostram insuficientes na atual conjuntura.

     A última intervenção da mesa coube a Eduardo Fagnani, já iniciando com o diagnóstico de que o que está em jogo atualmente no Brasil é um processo de radicalização do projeto liberal, tanto no plano social quanto econômico: “o golpe é uma oportunidade que os detentores da riqueza estão criando para implementar no país um projeto que eles tentam há mais de 40 anos. E por que uma oportunidade? Porque é algo que você dificilmente faria com o voto popular”, e complementou dizendo que com apenas uma canetada foram destruídos 20 anos de políticas voltadas aos direitos humanos, além daquelas voltadas à Cultura, à Ciência e Tecnologia e ao Desenvolvimento Agrário.

     No tocante ao âmbito econômico, Fagnani reafirmou que o objetivo do atual governo interino é o de restabelecer o tripé macroeconômico “meta de inflação”, “câmbio flutuante” e “superávit primário”. Entretanto, este modelo está sendo questionado até mesmo pelo Fundo Monetário Internacional, que em recentes publicações apontou a deficiência deste modelo para economias emergentes. “Desde a crise de 2008, nenhum país no mundo adota este tripé macroeconômico, e, se adota, o flexibiliza”, afirmou o pesquisador.
Fagnani apontou como preocupantes as intenções de autonomia do Banco Central, como também as que estabelecem autoridades fiscais independentes. “Se o câmbio é flutuante, se a política monetária é definida por meia dúzia de burocratas e a política fiscal é definida por outra meia dúzia de burocratas, como nós vamos conseguir fazer política econômica?”, questionou. Outra iniciativa prejudicial na visão do pesquisador é a PEC que cria o chamado “orçamento de base zero” que, na prática, desobriga qualquer tipo de vinculação orçamentária como as que estão presentes atualmente na Constituição e que abarcam as áreas sociais como saúde, seguridade e educação. “Por que você vincula constitucionalmente recursos para as áreas sociais? Porque se você não vincular, vai tudo para custear a dívida financeira. É simples assim”, afirmou, e prosseguiu dizendo que “o que está acontecendo agora é a destruição de todas as pontes, todos os mecanismos monetários, fiscais, tributários, enfim, tudo que se pode imaginar para que se tenha uma sociedade civilizada no futuro”.

     Sobre as tarefas colocadas no presente, Eduardo Fagnani também reafirmou a necessidade de união de todos os campos políticos que tenham uma visão diferente de projeto de país desta que agora está sendo explicitada, e concluiu dizendo que “é uma luta muito difícil, muito angustiante, porque a correlação de força é muito desfavorável”.

     Seguindo a dinâmica das reuniões do Coletivo de Conjuntura, a palavra foi aberta aos participantes. Lembramos que as sessões do Coletivo ocorrem a cada 45 dias e são abertas a todos os interessados. Em breve, a Fundação Lauro Campos disponibilizará os registros completos das atividades e, para as próximas, fará a transmissão ao vivo pela internet.