por Juliano Medeiros *
Durante o primeiro turno das eleições municipais deste ano, enquanto os principais meios de comunicação do país privilegiavam a cobertura da disputa eleitoral em São Paulo e Rio de Janeiro, uma verdadeira guerra era travada no norte do país. Durante todo o primeiro turno o candidato do PSOL à prefeitura de Belém, Edmilson Rodrigues, liderou as pesquisas de intenção de voto. Com apenas 42 segundos no horário eleitoral gratuito e duas inserções diárias de rádio e televisão, o ex-prefeito e atual deputado federal conseguiu superar adversários de peso e ir ao segundo turno contra o atual prefeito, Zenaldo Coutinho (PSDB).
Numa recuperação impressionante, o candidato tucano venceu a disputa contra o delegado Eder Mauro (PSD) por uma vaga no segundo turno. O também deputado federal, famoso por suas posições de extrema-direita contra a comunidade LGBT e em favor de penas mais duras para menores infratores, perdeu a segunda posição na última semana de campanha, sendo ultrapassado pelo atual prefeito que agora enfrenta Edmilson Rodrigues.
Belém é uma das três cidades em que o Partido Socialismo e Liberdade disputa o segundo turno. As outras duas são Sorocaba (SP) e Rio de Janeiro (RJ). Mas diferente destas, a disputa na capital paraense já toma o contorno de uma batalha épica.
De um lado, o candidato do PSOL, ex-prefeito por oito anos, professor doutor, arquiteto e ex-sindicalista, defensor dos povos indígenas e do meio ambiente. Um crítico implacável do que chama de “dinâmica perversa do capital” que amplia as desigualdades sociais e econômicas. De outro, um típico representante da velha casta política que vive dos privilégios do Estado: o tucano Zenaldo Coutinho é político profissional desde a adolescência, jamais trabalhou e aposentou-se aos 44 anos. É um filho das elites paraenses, um produto de marketing produzido com esmero pelos tucanos no Pará durante os anos 90.
Em 2012, na disputa que travou contra Edmilson Rodrigues no segundo turno, Zenaldo levou a melhor. Mas hoje chega desgastado ao segundo turno após quatro anos de completo abandono das políticas sociais, aumento da criminalidade e caos nos serviços públicos.
O primeiro turno acabou com leve vantagem para Zenaldo: o candidato tucano alcançou 241.166 votos (31%) contra 229.343 votos de Edmilson (29,5%). Uma pequena diferença de pouco menos de 12 mil votos. No segundo turno, os candidatos de oposição declararam seu apoio a Edmilson.
O primeiro foi o deputado estadual Lélio Costa (PCdoB), que obteve 0,76% dos votos no primeiro turno. Em seguida foi a vez de Ursula Vidal (Rede Sustentabilidade), uma das grandes surpresas da eleição. Ela alcançou 10,3% dos votos e declarou apoio a Edmilson na última semana. A candidata do PT, Regina Barata, que obteve 1,71% dos votos, também se manifestou nas redes sociais a favor do candidato do PSOL. O candidato do PMDB, o ex-reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Carlos Maneschy, fez questão de declarar seu apoio a Edmilson.
O PMDB divulgou nota pública declarando neutralidade no segundo turno, mas Maneschy, um professor que jamais havia disputado uma eleição e conquistou supreendentes 9,7% dos votos, fez questão de manifestar-se em favor do candidato do PSOL. Até o delegado Eder Mauro, terceiro colocado na eleição, que optou por não apoiar nenhum candidato, fez questão de expressar seu repúdio à candidatura tucana numa coletiva de imprensa na semana passada, o que pode facilitar a conquista de seu eleitorado, crítico da gestão tucana, por parte de Edmilson. Esses apoios deram resultado: na pesquisa Ibope divulgada na semana passada, o candidato do PSOL lidera com 46% das intenções de voto, contra 43%.
Para além da corrida eleitoral, há outras questões em jogo nesta disputa eletrizante entre PSOL e PSDB em Belém. Desde o impeachment de Dilma Rousseff e o aprofundamento da crise do Partido dos Trabalhadores, a esquerda brasileira passa por um processo de reconfiguração. Como é comum depois de um tsunami, o cenário devastador que o campo progressista encontrou nestas eleições também permitiu o surgimento novas alternativas.
O PSOL, após onze anos de legalização, tem se tornado o polo mais dinâmico num processo de renovação da esquerda brasileira que pode levar alguns anos. Por não ter feito parte dos governos petistas, rejeitando a tática de conciliação de classe que marcou a política do PT nos últimos anos, o PSOL é o partido que detém as melhores condições para liderar este processo de renovação. E esse fenômeno, evidentemente, não se resume a Belém, mas ocorre também em outras cidades como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Florianópolis, Recife e Cuiabá.
Mesmo em cidades onde os resultados eleitorais das chapas majoritárias não foram tão expressivos, como São Paulo e Belo Horizonte, o processo de oxigenação política da esquerda se faz sentir, com o surgimento de novas lideranças e a afirmação de uma agenda política de independência frente aos velhos partidos que se expressa mais claramente no PSOL.
Mas a experiência de Belém é ainda mais emblemática. Isso porque na capital do Pará o candidato do PSOL representa ele próprio uma intersecção histórica. Edmilson Rodrigues foi prefeito pelo PT entre 1997 e 2004, mas deixou o partido em 2005, no auge do escândalo do mensalão. Foi um dos raros políticos com experiência administrativa e reconhecimento público a ter a ousadia de romper com o partido de Lula. Tem ampla penetração em bairros populares de Belém, contrariando a realidade do PSOL em outras capitais, onde o partido ainda não alcançou essa capilaridade.
No entanto, a ruptura, que marca a rejeição da tática petista de conciliação com as classes dominantes, não significou a negação das boas experiências nascidas com as primeiras administrações petistas, que democratizaram a gestão do Estado, inverteram prioridades e enfrentaram poderosos interesses para assegurar a ampliação de direitos. Nessas experiências, onde se destacam os governos de Luiza Erundina em São Paulo (1989-1992) e os dezesseis anos de governos populares em Porto Alegre, Belém surge como a primeira tentativa de implementar um programa democrático e popular no coração da Amazônia, com todas as suas particularidades históricas, sociais e culturais.
Se os outros candidatos do PSOL que disputam o segundo turno no Rio de Janeiro e Sorocaba representam uma saudável e necessária renovação da esquerda (Marcelo Freixo tem 49 anos e Raul Marcelo tem 37), na candidatura de Edmilson se fundem o melhor daquilo que se produziu desde a redemocratização na forma de experiências de governos democráticos e participativos com a resistência daqueles que não aceitaram o vale-tudo da “governabilidade” e optaram por recomeçar praticamente do zero, criando o PSOL.
Se estivesse no Sudeste, Edmilson sem dúvida seria um dos mais badalados políticos da esquerda brasileira. Isso porque ele representa o encontro entre passado e futuro, materializado na promessa de um presente de renovação e esperança. Mesmo que muitos não consigam ver, na batalha que se trava em Belém, também está em jogo o processo de reorganização da esquerda brasileira.
*Juliano Medeiros é presidente da Fundação Lauro Campos
(artigo originalmente publicado na página da Carta Capital em 19/10/2016)