por Lucas Coradini *
Em 1958, Raymundo Faoro publicava Os Donos do Poder – formação do patronato político brasileiro, obra que se consagrou ao apontar a origem da corrupção e da burocracia no país. De acordo com o autor, toda a estrutura patrimonialista foi trazida de Portugal no período colonial, cristalizando-se na economia política brasileira desde então. Muito do que se pretende explicar hoje sobre o turbulento cenário político brasileiro seria possível fazê-lo através da releitura de Faoro. Entender a degenerada relação entre o público e o privado, empresários e políticos, capital e Estado, é a chave para compreender como o sistema político tem sido historicamente sequestrado por interesses particulares e a fragilidade de nossa democracia. Tornaria mais claro, enfim, identificar quem são os verdadeiros donos do poder hoje.
E chegaríamos então à conclusão que a democracia nunca coube no Brasil, e que as camadas populares jamais fizeram parte das estruturas de poder de fato. Que somos uma colônia de exploração desde sempre, com uma ligeira modernização mercantil orgulhosamente intitulada de agronegócio, que resume nosso papel no globo à produção de commodities. Que convivemos na quase totalidade de nossa história com regimes políticos conservadores e avessos aos avanços democráticos,frutos de uma aristocracia que perpetuou o trabalho escravo por três quartos da nossa história, e ainda fomos dos poucos países que após a independência manteve esse anacronismo por mais de meio século. Que tivemos a primeira legislação de proteção ao trabalhador somente em 1943, utilizando até então de um modelo servil característico do período pré-revolução industrial. Que nossa história republicana nasce das oligarquias e é atravessada por tantos golpes que a democracia parece ser o regime de exceção. Que desde o governo de Deodoro da Fonseca, passando pelo Estado Novo e pelo Regime Militar de 1964-1984, até os impedimentos de Fernando Collor e Dilma Rousseff, somos marcados por conspirações, golpes e rupturas. E, ao fim, que muito pouco mudou em relação às formas como os “donos do poder” imprimem seus interesses através das estruturas do Estado.
Com alguma perplexidade, a partir das investigações recentes, descobrimos que um grupo formado por pouco mais de dez empresas detém nas mãos – e nos bolsos – grande parte dos mandatários das casas legislativas, membros do executivo em todos os níveis da administração, e até do poder judiciário. Seja de forma legal, através de doações para campanhas, seja de forma ilegal, através de propinas, estas empresas impõem sua influência sobre as mais diversas legendas e sobre as mais diversas estruturas do Estado. Vemos constituir, assim, a bancada dos bancos, a bancada do boi, a bancada do cimento, a bancada da bíblia, a bancada da bala, e tantas outras quanto forem possíveis “comprar”, o que faz do jogo eleitoral um mero ato ficcional necessário para produzir algum senso de participação política popular. Um processo supostamente democrático enquanto, objetivamente, estamos diante da égide de uma ditadura do mercado. Os donos do poder encontram-se hoje nas grandes corporações empresariais, no agronegócio e nos meios de comunicação.
Apesar de a democracia nascer inserida no período de consolidação do capitalismo, percebe-se que as forças capitalistas vêm provocando sérios prejuízos ao modelo democrático. Para Schumpeter, alguns desvios do princípio da democracia estão atrelados à presença de interesses capitalistas organizados, ou seja, meios privados são frequentemente usados para interferir no funcionamento do mecanismo da liderança competitiva. Segundo o autor, os padrões do capitalismo impelem alguns grupos da sociedade a recusar as regras do jogo democrático, colocando em risco todo método político. O que vemos no Brasil vai além disso: utiliza-se das próprias regras do jogo democrático para o autobeneficiamento, a partir do instrumento do financiamento privado de campanhas que vincula a atuação da classe dirigente aos interesses de seus credores.
E é preciso destacar a violência simbólica que exerce essa ditadura do mercado, bem como as consequências da subordinação da democracia ao grande capital. Nas últimas eleições, JBS, Bradesco, Itaú, Vale, AMBEV, OAS, Odebrecht, Andrade Gutierrez, UTC e Queiros Galvão “doaram”, de forma legal, mais de 200 milhões a partidos políticos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral. Contudo, ilegalmente, somente a JBS teria distribuído 600 milhões a pelo menos 1829 políticos de 28 partidos em troca de contrapartidas no setor público ao longo dos últimos anos, naquilo que os corruptores chamavam de “banco de benevolência”. A Odebrecht chegou ao cúmulo de institucionalizar a atuação criminosa através de um “setor de propina” na empresa, que dispendeu entre 2006 e 2014 cerca de 10, 6 bilhões a políticos, valor que supera o PIB de 33 países. Recursos deslocados, há que se destacar, dos próprios cofres públicos, através de contratos superfaturados, perdão de dívidas fiscais e previdenciárias, e concessão de créditos subsidiados.
Preocupa que, diante do desvelamento dos mecanismos de apropriação do público pelo privado e da crise política e institucional colocada, não se vislumbre uma saída democrática e verdadeiramente alinhada aos interesses nacionais. Enquanto se engendra a queda do presidente envolvido em corrupção, as análises sobre os possíveis desdobramentos seguem pautados pela “reação dos mercados” ou pelas perspectivas de continuidade de reformas feitas sob medida para o grande capital. Mais do que discutir o sistema político que permitiu o sequestro do estado por corporações empresariais, ou a necessidade de resgatar a legitimidade da classe política a partir de eleições diretas, confabula-se sobre os possíveis nomes capazes de mediar a crise com os interesses corporativos dos donos do poder. Em outras palavras, se discutem as peças do tabuleiro mas não se discutem as regras do jogo. Enquanto isso, em nome de uma pretensa recuperação econômica, privilegiam-se justamente os interesses corporativos que levaram ao atual quadro, impondo uma agenda de retrocessos em conquistas sociais consagradas, como a legislação trabalhista e previdenciária, jamais submetida às urnas.
Trata-se de uma visível sobreposição da razão econômica em relação à razão social, como de fato o é desde que o Estado tem se resumido a um aparelho de lobismo para patrocinadores das campanhas, de relações clientelistas e patrimonialistas conflagradas com o setor privado, e de manutenção do sistema da dívida pública como meio de transfusão de recursos públicos para o capital financeiro. E daí decorre o problema da legitimidade. Como já apontava Habermas, com o avanço do capitalismo o sistema político vem sendo colonizado por meios de controle como o dinheiro, o mercado e a burocracia, até ocorrer um desacoplamento entre o sistema e o mundo da vida. Esse processo de diferenciação impulsionado pela modernização social, quando a instância política não atende às necessidades da sociedade civil, faz intensificar o conflito entre o sistema e o mundo da vida, naquilo que hoje se apresenta como uma enorme crise de representação. Ao mesmo tempo, as formas tradicionais de organização social encontram-se fragilizadas, colocando em descrédito o potencial de renovação de partidos políticos, movimentos sociais e sindicatos, que têm se mostrado incapazes de canalizar os anseios e reivindicações populares emergentes.
Vivemos, portanto, um momento complexo, de crise política e institucional sem precedentes. Política, pelo agravamento da falta de representatividade e legitimidade da classe dirigente. Institucional, pela percepção de que os três poderes da república revelam-se colonizados por interesses privados. Que modelo de Estado é possível a partir desse cenário de crise das instituições, e em que as formas tradicionais de organização não apresentam respostas para os problemas colocados? Se nenhum partido ou movimento social têm capitalizado politicamente a ponto de fazer-se alternativa às transformações ensejadas, para onde convergirá as mudanças que devem marcar esse novo momento da república? O que, ou quem, terá condições de substituir essa classe política?
No momento em que se discute a mudança da Constituição para a realização de eleições diretas, deve-se considerar os riscos que a atual descrença na politica pode produzir num possível pleito presencial. Sejam eles: a adesão a lideranças totalitárias e aos discursos nacionalistas, que historicamente emergem nas crises; ou a adesão a lideranças populistas pretensamente dissociadas do metiê político, que ocultam suas bases ideológicas sob o discurso da não-política, mas geralmente ligadas ao mercado. Mesmo o retorno de Lula, que não se encaixa em nenhuma das alternativas anteriores, traria em si a manutenção da polarização estabelecida no cenário nacional desde as eleições de 2014, o risco de ingovernabilidade pela relação com a base parlamentar que chancelou o impeachment de sua sucessora, além do idêntico desgaste de todos os envolvidos nas investigações da Lava Jato. Por outro lado, se observada a Constituição e transigida a eleição indireta, a possibilidade de uma sucessão mediada com e pelos donos do poder é a consequência óbvia, em se tratando de uma indicação do atual Congresso.Nem uma nem outra opção dão conta de superar os dilemas que o país enfrenta, que passam necessariamente pela reformulação do sistema político e eleitoral. É preferível, antes, o avanço e aprofundamento das investigações da Lava Jato,uma drástica renovação da classe dirigente – especialmente do parlamento – e, sobretudo, um momento de inflexão sobre o Brasil que queremos e a democracia possível, num esforço de aproximação das estruturas de poder com os interesses populares.
Uma discussão que só tem ambiente para ser desenvolvida a partir de uma nova assembleia constituinte exclusiva, que aprofunde o debate sobre as reformas necessárias, incluindo as recentemente tramitadas. Uma constituinte realizada para além dos quadros político-partidários, agregando membros da academia, cientistas políticos, juristas, constitucionalistas, movimentos sociais e representantes dos diferentes segmentos que compõem o mosaico étnico e cultural brasileiro. Se a Constituição tem sido desfigurada para atender aos interesses mais obtusos dos donos do poder, como ocorreu com a emendado congelamento dos investimentos públicos por vinte anos, ou como ocorre em relação à reforma da previdência, que ela seja também revista para, de uma vez por todas, romper a ordem estabelecida e induzir algum nível de democratização das estruturas estatais. Está claro que o atual nível de desagregação institucional tem afetado a funcionalidade do Estado, e que todo legado da Lava Jato será inócuo sem transformar a estrutura política vigente, ou seja, sem prescrever um novo contrato social que repactue o papel do estado e a dinâmica de suas instituições. Tão importante quanto a pauta das eleições diretas, para retomar o poder de escolha a quem lhe é de direito, importa devolver o poder “de fato” à vontade popular, garantindo o alinhamento da representação política às agendas e programas submetidos às urnas.
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FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder – formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre, Editora Globo, 1958.
HABERMAS, J. Teoría da Acción comunicativa I: racionalidad de la acción y racionalización social. 3. Ed. Madri: Taurus, 2001.
SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia . Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1984.
Lucas Coradini é mestre em Sociologia, Doutor em Ciência Política, e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul.
(artigo originalmente publicado na página Sul21)