A Intervenção Militar no Rio de Janeiro não é novidade – Revista Socialismo e Liberdade

A subordinação das PMs ao Exército estabelece há décadas uma tutela militar nas forças de segurança pública. Situações dessa natureza colocam a população pobre em permanente risco

Ivan Seixas

A intervenção militar do Rio de Janeiro, em meio ao aprofundamento do golpe de 2016, reacende o medo de termos uma nova ditadura militar. Não é para menos. A reedição de uma tragédia pode ser ainda mais grave e trágica. Se nos fiarmos na célebre frase de Marx, em O 18 brumário de Luís Bonaparte, de que a história acontece da primeira vez como tragédia e a segunda como farsa, é essencial juntar esforços para que o replay não nos surpreenda.

No clima bélico criado no Rio, um general chegou a afirmar, em palestra recente na Escola Superior de Guerra, que “a Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia”. A expressão “o que fizemos no Araguaia” pode ser sintetizada nas capturas e assassinatos de 64 participantes da Guerrilha do Araguaia, organizada pelo Partido Comunista do Brasil, no sul do Pará. Seus corpos estão desaparecidos até hoje. Ou seja, as Forças Armadas cometeram delitos previstos na Convenção de Genebra, que qualifica como crime de guerra o tratamento desumano a prisioneiros, a execução sumária depois de capturado o inimigo e a ocultação de seus restos mortais. Não se sabe se o militar quer repetir “o que fizemos no Araguaia” nos morros do Rio.

Segurança nacional

A participação das Forças Armadas na segurança pública nunca deixou de acontecer. Traçada como estratégia de segurança nacional ainda nos tempos da ditadura, essa participação integra o conceito de “manutenção da ordem pública”. Apenas esporadicamente ela aparece de forma ostensiva aos olhos do grande público. Assim se deu em grandes eventos, como a Rio 92, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. A nova invasão de áreas pobres faz parte dessa métrica.

O Exército e Marinha tiveram presença marcante nas ocupações de favelas para a implantação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e não fizeram nada mais do que agredir direitos de moradores, os quais eram tratados, em geral, como inimigos das tropas. Foram gastos vastos recursos e o resultado foi apenas um show midiático. Depois do impacto criado pela mídia, o serviço acabou e caiu no esquecimento, a exemplo das fracassadas ações no Complexo da Maré.

Se a ocupação militar servisse para o chamado combate ao tráfico de drogas, não teríamos outra ocupação depois de quatro anos do espalhafatoso espetáculo de 2014. E as drogas não seriam apreendidas em helicópteros de senadores, em fazendas de ministros latifundiários a quilômetros dos morros cariocas ou em transportes por caminhões e navios. O grosso da droga não pertence aos moradores de favela, pertence aos proprietários de grandes apartamentos milionários. Nos morros e periferias há apenas distribuidores para a classe média. Os pobres são estigmatizados como perigosos traficantes para desviar a atenção das verdadeiras organizações criminosas, lucrativas empresas capitalistas.

É inegável que esses pequenos varejistas do tráfico usam armas de grosso calibre, assim como é inegável que latifundiários também usem armas semelhantes para eliminar camponeses em luta pelo direito à terra. E nenhuma tropa é deslocada para locais de conflito com objetivo de confiscar esses arsenais.

Máximos e mínimos

Os montantes utilizados para o espetáculo midiático são enormes e os recursos destinados a proporcionar infraestrutura para a vida dos habitantes das favelas são mínimos. Na história dos governos do Rio de Janeiro, apenas o de Leonel Brizola se destaca como aplicador de orçamentos em benefício das maiorias. Quando o antigo governador instalou elevadores e teleféricos para facilitar o acesso de moradores aos seus locais de moradia, levantou-se uma onda de protestos elitistas contra a iniciativa.

Quando o mesmo Brizola se dedicou a construir os famosos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), concebidos por Darcy Ribeiro, equipados com salas de aula, bibliotecas, quadras de esporte, piscinas e toda a infraestrutura adequada à uma educação pública de qualidade, a mesma mídia se dedicou a condenar o projeto. Em resumo, a direita brasileira detesta pobres e quem promove políticas públicas democratizantes.

A ação policial, em vários países, não se dá por movimentações de tropas ou por espetáculos midiáticos. Só acontece como resultado de trabalho científico de inteligência, investigação e coleta de provas para a condenação dos acusados, tarefa da Polícia Judiciária Civil. Do contrário, vai inevitavelmente cair na agressão aos Direitos Humanos, na violação da lei e do Estado de Direito Democrático.

Forças Armadas e segurança pública

A alocação de tropas da Polícia Militar em favelas com a incumbência de investigar, reprimir e prender suspeitos, tomando o lugar da Polícia Judiciária Civil, leva à violências contra a população – sem falar em casos como o do pedreiro Amarildo Dias de Souza, preso, torturado e desaparecido até hoje – e à promiscuidade com o crime organizado. Não por acaso, no mesmo Rio de Janeiro acontece o “fenômeno” do surgimento de quadrilhas de policiais apelidadas de Milícias, que dividem espaço com as demais quadrilhas civis.

Ou se reforça o trabalho da Polícia Civil, que tem legalmente a atribuição de investigar e prender, ou as atrocidades contra a população trabalhadora, moradora dos morros cariocas, continuará acontecendo e novas “intervenções militares” continuarão a ser pedidas e executadas.

Repetindo: o Exército nacional nunca esteve alheio ou distante da atuação das Polícias Militares em qualquer estado da federação. Há uma ligação orgânica entre ambas as instituições, legalmente e não apenas como colaboração entre as forças.

Pelo decreto 88.777, de setembro de 1983, de iniciativa de João Baptista Figueiredo, último general da ditadura, as polícias militares passaram formalmente a ser vinculadas ao Exército e se integraram ao Sistema Nacional de Informações, órgão central da repressão política no país. Esse decreto nunca foi revogado por nenhum governo democrático, o que mostra o descaso com questão tão séria para a vida cotidiana da população.

Pelo artigo 3º desse dispositivo, o Ministério do Exército exercerá o controle e a coordenação das Polícias Militares, por intermédio do Estado-Maior do Exército, em todo o território nacional. E pelo Parágrafo Único, “O controle e a coordenação das Polícias Militares abrangerão os aspectos de organização e legislação, efetivos, disciplina, ensino e instrução, adestramento, material bélico de Polícia Militar”. Ou seja, as PMs são treinadas e dirigidas pelo Exército brasileiro.

Pelo artigo 5º, “As Polícias Militares, a critério dos Exércitos e Comandos Militares de Área, participarão de exercícios, manobras e outras atividades de instrução necessárias às ações específicas de defesa interna ou de defesa territorial, com efetivos que não prejudiquem sua ação policial prioritária”.

Rio de Janeiro – Forças Armadas fazem operação conjunta com as polícias Civil e Militar em comunidades na zona oeste da cidade. Os militares estão apoiando ações nas comunidades de Vila Kennedy, Vila Aliança e Coreia (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

A digital do Exército Brasileiro está gravada no artigo 37, que diz:

Compete ao Estado-Maior do Exército, por intermédio da Inspetoria-Geral das Polícias Militares:

1) o estabelecimento de princípios, diretrizes e normas para a efetiva realização do controle e da coordenação das Polícias Militares por parte dos Exércitos, Comandos Militares de Área, Regiões Militares e demais Grandes Comandos;
2) a centralização dos assuntos da alçada do Ministério do Exército, com vistas ao estabelecimento da política conveniente e à adoção das providências adequadas;
3) a orientação, fiscalização e controle do ensino e da instrução das Polícias Militares;
4) o controle da organização, dos efetivos e de todo material citado no parágrafo único do artigo 3º deste Regulamento;
5) a colaboração nos estudos visando aos direitos, deveres, remuneração, justiça e garantias das Polícias Militares e ao estabelecimento das condições gerais de convocação e de mobilização;
6) a apreciação dos quadros de mobilização para as Polícias Militares;
7) orientar as Polícias Militares, cooperando no estabelecimento e na atualização da legislação básica relativa a essas Corporações, bem como coordenar e controlar o cumprimento dos dispositivos da legislação federal e estadual pertinentes.

Assim, a Polícia Militar de qualquer estado da federação está sujeita ao Estado Maior do Exército. Daí não ser correto dizer que a PM está fora de controle quando a corporação comete alguma atrocidade contra manifestações populares. Está sem o controle do poder civil, das entidades e órgãos dos governos, mas está sob controle e orientação do Exército brasileiro.

Para tirar dúvidas quanto a esse controle e direção, basta ler o artigo 33 do decreto:

A atividade operacional policial-militar obedecerá a planejamento que vise, principalmente, à manutenção da ordem pública nas respectivas Unidades Federativas.

A intervenção do Exército não é, assim, marca apenas de um governo golpista, fraco e dependente de malabarismos para sobreviver mais alguns meses. A iniciativa existe cotidianamente há tempos.

Por outro lado, expoentes de esquerda ou da academia dão declarações indignadas contra essa atuação, mas poucos tocam na extinção dessa estrutura militarizada das Polícias. Não examinam o essencial.

Qualquer agrupamento de esquerda, que pense minimamente o país com uma perspectiva democrática e que tenha sensibilidade para os segmentos populares deveria ter em sua agenda a desativação dessa complicada relação entre Exército e Polícias Militares. Caso contrário, a intervenção seguirá acontecendo sem que a maioria perceba.