O cemitério que virou mictório

Cemitério MictórioDormindo de bruços só se escutam ruídos.  Por isso, vira-se de barriga para cima.  A sombra salta do escuro, pula por cima da cama, projeta-se pela janela e some no negrume da noite.  K. esfrega os olhos antes de levantar.  Tem o costume de dormir nu.  Sai assim mesmo porta afora.  A rua está deserta.  K. caminha ao acaso um sem tempo como se pisasse o espaço do sem fim.  Caminha, caminha e continua a caminhada sem esforço.  Então, prossegue caminhando por caminhar.  A noturna negrura está ofuscada por um luar inverossímel.  K. exclama “Valha-me Deus, Nossa Senhora!” numa voz sem sonoridade.  Estala os dedos, de curiosidade, e o estalar não se faz escutar.  Olha para ver a sombra.  A sombra o acompanha.  O luar a tudo ilumina e abafa tudo.  Vislumbra à distância um adolescente nu no limiar de um portal.  Vai até lá.  O adolescente ultrapassa o limiar e detém-se defronte a um bebê nu que, sorridente, gesticula e pateia o vento, de dorso sobre a lápide onde jaz sua mãe.  O bebê abandonado está feliz.  Faz pipi pro céu como se fosse um chafariz num carro alegórico.  E proclama com sua graça pueril: “Nasceu, morreu.  Antes ela do que eu!”.  O adolescente inspira-se no bebê e mija no canteiro de flores que enfeita a lápide.  Tem um estremecimento e reconhece-se no bebê.  K. sente uma irrefreável vontade de urinar.  Urina na coluna do portal.  Tem um calafrio e reconhece-se no adolescente.  “Tríplice e não obstante uno: o mistério da trindade.  Cruz, credo!”, benze-se K.  A sombra assusta-se e foge.  O luar escafede-se também.  K. fica perdido no breu total.  Estala os dedos, de curiosidade.  Escuta-se o estalar.  Nada se vê.  No descampado da noite ressoa tudo e tudo se oculta.  K. de olhos fechados caminha ao léu.  Não sabe, mas está de volta à casa, deitado na cama.  Continua de olhos fechados como se caminhando estivesse.  E dorme.  O ronco de K. propaga-se em noturnas ondas sonoras.  E nelas surfa o sonho de W.

Sente sórdidos calores, como se suas carnes ardessem no Inferno: “Vade-retro,  Satanás!”  E excitantes odores, irresistíveis pendores…  W. revira-se no colchão, amarfanha os lençóis, despoja-se da camisola e aconchega em sua nudez a coisa escura que o negrume da noite brota na janela e despeja sobre o seu leito.  A coisa se esgueira.  Ela a puxa sobre si, a quer em si…  A coisa escorrega, escapa pela porta  Ela se levanta e sai para a rua.  Caminha sonâmbula atrás da coisa que quer para si.  “Onde está a coisa?  Aonde foi?”  Faz escuro e ela nada enxerga.  A coisa a enlouquece.  W. contempla pela fresta da loucura o noturno da rua deserta na loucura da fresta: “Fresta.  Quero festa!”  Vislumbra ao longe uma mansão iluminada.  Ruma para lá.  No umbral da mansão é recepcionada por uma falange angelical.  W. está extasiada.  “Volte para casa e sossegue.  Somos assexuados.”  W. verte lágrimas que comovem o arcanjo, mas os anjos são impotentes.  Aos prantos, W. implora aos céus: “Pelo amor de Deus, ao menos por compaixão!”  Os anjos choram compadecidos: “Nada do que você precisa está ao nosso alcance.  Quem sabe outros possam ajudá-la.  Tente exús, pombajiras…”  W. ruma para o cemitério.  Sente cheiro de mijo na coluna do portal.  Segue farejando.  O seu olfato de fêmea não a engana.  Encontra uma tumba recém visitada.  Agacha-se sobre ela e faz xixi.  Mas já não há vivalma.  Um manto de escuridão enseja uma tempestade de relâmpagos no campo dos mortos.  É assustador.  W. afasta-se do cemitério. Fora, faz uma cálida noite de lua plena.  W. aguça o olfato.  É toda instinto.  Segue sonâmbula de volta à casa.  Acosta-se com a coisa que está em seu leito.  Deleita-se.  O deleite a faz arfar.  A sua arfada ganha a imensidão noturna e agita o sono de Y.

O sonho agita-se em sono terminal.  Y. sente a alma querendo fugir pela boca.  Tranca os lábios, mas logo percebe que a alma busca escapar também pelas narinas, apenas que com muito maior dificuldade, haja vista a exigüidade dos orifícios nasais.  Consciente de que é chegada a hora, Y. liga para K.: “Meu filho, ouça-me: estou ligando para avisar que não vou acordar.”  Mas K. não o escuta.  Está muito entretido, sonhando com W.  Mesmo sem escutar, trata de se livrar do velho:  “Legal, pai.  Melhor assim.  A gente tem mesmo que partir um dia, né?”  E volta a sonhar o seu idílio com W.  Extasia-se.  O êxtase o faz urrar: “Ip ip hurra!”.  O hurra o desperta.  É tarde da noite.  Escuta um ruído soturno no corredor.  Pé ante pé, espia.  É Y.  Está pálido e pelado.  Seu ser exausto já renunciara à vitalidade.  “Pô, pai.  Tá a fim de me assombrar?”  Y. fita K. e retruca na lata: “Qual é?  O ateu aqui é você.  Eu sempre disse que era espírita”.

Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996).