Uma partida para o Egito

EsfingeÚnico aprovado entre quinze candidatos no teste para a Rádio Cairo , em 1971, fiquei sabendo no consulado que o contrato como redator-locutor-tradutor seria de dois anos renováveis e que o salário era bem razoável, considerando-se o baixo custo de vida da capital egípcia.

O momento crítico levou à dúvida: ir com minha mulher Linda ou deixá-la com a família, já que tão bem se reintegrara a ela. Não havia eu de certo modo cumprido a minha missão, o meu dever de ampará-la e recolocá-la de cabeça erguida e com os pés firmes junto aos seus parentes? O Egito, cujo passado deslumbrava por causa dos Faraós, das Pirâmides e da Esfinge e cujo presente atemorizava por causa de Nasser (já assassinado) e sua independência, não seria país muito estranho para brasileiros? O Cairo, sempre evocando filmes de espionagem, não seria perigoso? Essas indagações foram absolutamente em vão e inclusive o argumento segundo o qual dois anos passariam rápido e eu voltaria com uma reserva de grana para uma vida mais folgada. Nada removia Linda da decisão de me acompanhar, a qualquer lugar que fosse. Ademais, era uma chance difícil de obter nas nossas condições financeiras, de conhecermos a Europa – especialmente Paris.

Tínhamos mais ou menos dois meses para preparar a partida, o que significava desfazer o lar que com tanto carinho e tanta dificuldade fora montado há três anos e meio numa cobertura da Buarque de Macedo.

Vendemos móveis, eletrodomésticos e alguns livros. Dos primeiros lá se foi a belíssima poltrona de couro da Oca, presente de um amigo; dos segundos, a televisão comprada à vista na rua Uruguaiana; e dos terceiros, edições preciosas no original desejadas por um poeta, amigo meu: as obras completas de Baudelaire da Pléiade, as “Crônicas Italianas”de Stendhal e a “Volta ao dia em 80 mundos” do Cortázar.

Linda teve que preparar seu guarda-roupa de inverno e me lembro de um belo casaco – foi pago? não sei – da butique Vison, o qual a acompanhou durante todo o período no exterior. Porém, houve algo esdrúxulo: a compra de uma peruca então na moda e que Linda, apesar de seus belos, finos e macios cabelos, fazia questão de usar.

Me lembro aqui do Professor, criado por Antonio Bulhões no “Elogio da Corrupção”, ao dissertar sobre a moda: “(…) A sedução da moda também se verifica em extensa gama de atividades outras; do livro à revista, do filme ao programa de televisão, do must ao esporte do momento, da gourmandise ao drinque de classe, dos lugares públicos aos endereços privados, dos passeios turísticos às admirações estéticas, do candidato à eleição ao melhor carnavalesco, do ator ou atriz preferidos ao maestro temperamental ,do objeto cult à griffe em voga, dos óculos extravagantes às lapiseiras requintadas, ia quase dizendo – tão extenso é o elenco a que me poderia ater, se quisesse – do talismã ideal ao bandido mais romântico. Ou do pensamento à linguagem. (…) O individualismo está agonizante. O efêmero, adotado insensivelmente como valor permanente, impõe-se. A célula social erigiu em padrão exemplar a aparência publicitária.”

Afinal, embarcamos do verão austral para o inverno boreal: Linda, com a dispensável peruca e o casaco da Vison; eu, com um blazer usado cedido pelo pai de Linda. No bolso, os cheques de viagem em dólares comprados com a venda da desmontagem do lar. Não muito polpudos: duas semanas antes o dentista de Linda exigiu que ela fizesse uma pequena intervenção periodôntica que me comeu alguma grana. (Tenho quase certeza de que certas doenças podem entrar na lista de sedução da moda feita pelo Professor citado há pouco.)

Dissemos adeus aos parentes de Linda e a alguns meus.

Eu particularmente disse adeus ao governo militar de Médici, adeus a três ou quatro prestações de jóias e de móveis, adeus aos juros do agiota (ah! minha porção dostoievisquiana!), adeus ao desemprego, adeus ao sufoco financeiro, adeus à crise conjugal, adeus ao púbis preto-peludo e ao cheiro forte de Helena, adeus aos quatro anos de vida doce, terna, angustiante, realizada, instável, crítica, adeus.

 

Flávio Pinto Vieira , jornalista e escritor, é autor do livro de contos Nove histórias e dez mulheres (7Letras).