A aliança

AlinaçaEspreguicei na cama e, ao voltear a cabeça, revelou-se para mim a aliança sobre a mesinha de cabeceira. A visão escabrosa acarretou-me o mal-estar das apostas perdidas, das desilusões amargadas, do passado traído, do sonho despedaçado.

Aquela argola de ouro com o nome dela gravado, aquele anel de compromisso custara-me os olhos da cara. Ela fora pudica, dizendo-me que dispensava algemas. Eu insistira, cego que não enxerga senão o que quer ver. Ela me disse que então comprasse umas baratinhas. Mas comprei umas caras, não as mais caras, mas bastante caras para o tamanho do meu bolso; desvario, romantismo que me fazia imaginá-la esfuziante no aconchego arcaico de um minueto naftalênico.

Ela aceitara a aliança em seu dedo de casada, resignada, ainda que pouco à vontade. Disse-me que eu desperdiçara dinheiro. Eu não queria ouvi-la, mas a frase forte impressionara minhas células cerebrais. Mal pagara, melhor, recém assinara a fatura da compra a prazo, quer dizer, ainda não a pagara, já me arrependia da compra. Mas resistia a encarar o fato que afrontava o meu desejo. Disse-lhe que só me importava vê-la feliz. E perguntei se ela estava feliz. Ela olhou pela primeira vez o anelar esquerdo com a aliança de ouro que levava o meu nome e me respondeu que era bonita. Coloquei a outra aliança em mim e, estendendo a mão para exibi-la, indaguei se ficava bem no meu dedo. Olhou e disse, hesitante, que sim. Perguntei se meu dedo não era muito gordo para o anel. Respondeu que não, que ficara bem.

Eu já estava desesperado com o meu fiasco e não sabia mais a que recorrer: que frase, que artifício… O silêncio tombou sobre nós com a frieza de uma lâmina de guilhotina, instalando-se a abissal distância que só a rejeição pode cavar.

Ela baixara a vista. Eu não poderia me render sem mais nem menos; e ansiava, desesperadamente, por uma saída honrosa. Percorri a galeria de lojas com o olhar vago até vislumbrar um restaurante japonês. Ela adorava comida japonesa. Pensei rápido e convidei-a para comemorarmos as alianças com um saquê. Ela assentiu com um sorriso pálido.

Sentamos à mesa; uma que dava a vista para o mar. O ar condicionado aliviava o calor e a paisagem me trazia a sensação aprazível da brisa marinha, mas os goles de saquê afogavam-me o espírito numa enxurrada de tristeza. As lágrimas foram brotando, primeiro em meus olhos, depois nos dela. E o peixe cru foi sendo salgado por nosso pranto incontido, até ficar intragável.

Ela assoou o nariz no guardanapo. Quis recriminá-la, mas não tive ânimo. Ela assoou o nariz com mais força. Eu peguei o meu guardanapo e assoei o nariz também.

Perguntei se ela chorava por algum amor não correspondido. Ela não respondeu que sim nem que não. Não admitiu que o outro só a queria para fazer sexo. Nem revelou que ele era casado. Perguntei desde quando ela me traía. Ela não me confessou que desde sempre. Com quantos? Não me segredou que com muitos, com todos que souberam despertar os instintos que trazia à flor da pele e que a arrebatavam. Tampouco disse que queria que eu soubesse que me amara e que se martirizara a cada traição, mas que agora, não sabia como havia acontecido, agora se perdera nesta nova paixão.

A sua expressão magoada me dizia que o amante a desenganara com a afirmação de que jamais se separaria da sua mulher. Perguntei se ele tinha filhos. Emudecida dizia que não, que ele amava a mulher dele. E com a intensidade de seu olhar desamparado exclamava que não suportaria me perder.

As lágrimas sulcavam-lhe o rosto em testemunho da sinceridade de suas emoções. O garçom protestou conosco que estávamos inundando o restaurante. Pensei em matá-la em legítima defesa da minha integridade afetiva. Ela me disse que queria morrer. Soluçava. Decidi puni-la, deixando que experimentasse o fel da frustração. Saí sem pagar a conta. Ela me chamou. Minha alma quis voltar, meu coração quis ficar, mas as pernas seguiram em frente com pisadas trôpegas no chão encharcado que, à minha passagem, respingava lágrimas enlameadas nas mesas em volta.

Hoje, faz dez anos que esta aliança, relíquia indecorosa, está sobre a mesinha de cabeceira. Estamos no mesmo apartamento, na mesma cama. Ela dorme tranqüila, aliança no anelar esquerdo, luxuriante ao meu lado, seios lascivos, mamilos voluptuosos, bicos crapulosos. Nossa filha dorme no outro quarto. Nossa filha?! Peguei a aliança da mesinha de cabeceira. Encaixei-a no dedo. Resolvi estrangulá-las.

 

* Sergio Granja é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS(Record, 1996).