A obra de Morales

TatuagemOs olhos escuros de Eva encontraram os olhos claros de Ricardo. Aos 15 anos a menina pesava 45 quilos e a sua pele era formosa. O corpo ágil chamou a atenção de Ricardo. Ele jamais olhava por olhar. Sua mirada sempre significava. Eva não sabia.

Eva brincava na praia vazia, sob a luz matinal. Ele pensou em como a menina se prestava aos seus intentos.

Eva era filha do caseiro de Crane, que hospedava Ricardo. Tudo ali era de Crane: a casa, a praia onde ficava a casa e a ilha em que se localizava a praia.

Os cabelos fartos e os profundos olhos azul-acinzentados de Ricardo encantaram a menina. Eva também gostou do leve sotaque castelhano. Ele falou de flores, da luz da manhã e até recitou um poema de Kávafis. Finalmente, a convidou para tomar sorvete com cassis que trouxera do continente na bolsa de gelo.

Sentaram na varanda e Eva falou dos roedores que viviam no jardim, dos pássaros que comiam em sua mão, e dos ventos que envergavam as árvores. Ricardo se confessou encantado com o Oceano Pacífico. Ele pediu licença e entrou na casa. Voltou com um estranho aparelho. Assemelhava a uma arma. “A sua pele é perfeita” ele disse. Ela apenas sorriu.

Eva completara 18 anos quando o homem representando Crane desembarcou na ilha. Era formal. Usava terno e gravata. Eva nunca vira alguém assim. O homem falou com seu pai e depois a chamaram. Seu pai a fez cobrir o busto acentuado e mostrar a tatuagem. O homem a examinou durante alguns minutos, depois sacou uma pequena câmera e fotografou a obra. Ele chamou a tatuagem assim: a Obra de Ricardo Morales.

Um mês depois o homem voltou, acompanhado de dois outros. Eram formais, bem barbeados, e também examinaram a tatuagem. Eva pensou que não eram atraentes como Ricardo. O pai de Eva a convidou para um passeio na praia e contou tudo. O rico Crane os queria na cidade.

Eva e seus pais foram instalados numa casa pequena, dentro do parque onde ficava outra casa, enorme. Lá morava Crane. Seu pai assinou papéis e uma costureira preparou um vestido para Eva. Havia um grande decote nas costas onde ficava visível a tatuagem. Logo abaixo, na altura da bunda, estava gravado no vestido: tatuagem sobre pele. 12 X 16 cm. Ricardo Morales.

Crane oferecia jantares num enorme salão onde as paredes eram cobertas de quadros de todos os tipos, com variados motivos. Também havia esculturas, as mais estranhas e em todos os materiais. Durante esses jantares, Eva ficava parada, em pé, entre outras estátuas e quadros assinados por Ricardo Morales. Eva ficou sabendo que ele havia praticado suicídio um ano depois de tatuar as suas costas.

Eva conversava com os empregados da casa. Não havia nenhum como Ricardo, de olhos tão claros e voz tão inesquecível, mas Eva gostou de Roberto. Ele dirigia os carros de Crane. Eram muitos modelos e ainda havia outro motorista. Eva era impedida de sair da área da mansão, mas Roberto a escondeu no banco traseiro da Mercedes e saíram para passear. Roberto a tentou beijar. Ela consentiu. Ele quis tirar suas roupas. Ela quis mostrar a tatuagem, mas ele não estava interessado. Até xingou a tatuagem. Tentou beijar seus seios, e ela deixou. Finalmente, Eva perdeu a virgindade com Roberto. Gostaria que houvesse sido com Ricardo, mas…

Aos poucos, Eva aprendeu a amar Roberto. Ele queria ficar com ela. Declarou sua vontade. Eva aceitou, mas o rapaz impôs uma condição. Conhecia um tatuador que cobriria a tatuagem da noiva com outra. Eva contou para seu pai, que contou para o advogado, que contou para Crane. Roberto foi dispensado e Eva nunca mais o viu.

Quando Eva completou 48 anos, seu pai e mãe haviam morrido. Ela passou a morar num quarto dentro da mansão. Fazia pequenos serviços para matar o tempo. Era solicitada poucas vezes a mostrar a tatuagem. Se tornara amante de um dos jardineiros. Sua felicidade consistia nos bons momentos que passava com ele, embora o homem não lembrasse nem um pouco Ricardo. Estava ajudando seu namorado a preparar um canteiro quando a governanta saiu porta afora anunciando: Crane havia morrido.

Dois meses depois, todos os empregados foram chamados à presença do advogado dos novos proprietários. Eva não tinha função específica. O homem sorriu quando ela contou o que fazia na casa. Alguns dias depois ela recebeu um envelope com algumas notas. Assinou um recibo e foi dispensada. Saiu na avenida com uma pequena mala. O movimento a assustou um pouco. O mundo era um tumulto incompreensível.

* Flávio Braga é romancista, roteirista e editor. Este ano publica pela ed. Record 68, o romance.