Entrevista especial com Joviano Gabriel Maia Mayer
“As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades”, frisa o advogado.
Ao contrário do que se supõe à primeira vista, maioria não se opõe à minoria (há aqui apenas uma diferença de grau). Maioria se opõe à Multidão, no sentido de totalidade das singularidades. No espaço urbano, as disputas biopolíticas que se dão nas cidades tensionam um modo de ser análogo a uma espécie de fábrica pós-fordista que produz uma única coisa de inúmeras formas: o Comum. “Aqui se considera que a produção imaterial de linguagem, saberes e afetos é, em princípio, comum, até que se opere a captura pelo capital, via direito de propriedade, o que ao mesmo tempo, contraditoriamente, restringe sua produtividade. Assim, é nessa fábrica pós-fordista, esparramada pelo — e intrincada com o — espaço metropolitano que a força produtiva se conforma cada vez mais como uma intelectualidade da multidão”, explica Joviano Gabriel Maia Mayer, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
“Se, por um lado, o poder instituído busca imobilizar e reduzir nossa potência por meio do medo e das paixões tristes, por outro, os(as) ativistas de todo o mundo reconhecem a dimensão política da felicidade e das paixões alegres para potencializar as resistências e agregar mais pessoas”, provoca o entrevistado. Ele coloca que o binômio Estado-Iniciativa Privada só é capaz de oferecer políticas públicas verticalizadas e rígidas, como o Minha Casa Minha Vida. “As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades”, completa.
Joviano Gabriel Maia Mayer possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e é mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG. Atualmente é sócio fundador do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular.
Mayer esteve no IHU nesta quarta-feira, 07-10, ministrando a conferência Por uma teoria e uma prática radical de reforma urbana: o caso BH em comum, que integra o evento 2º Ciclo de Estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. Territórios, governamento da vida e o comum, que segue com suas atividades até o dia 05-11-2015. A próxima atividade será a conferência Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças, com o professor Mário Leal Lahorgue, que ocorrerá no dia 22-10-2015, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas aqui.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – De que maneira as cidades se constituem enquanto espaços de produção do Comum?
Joviano Gabriel Maia Mayer – As apostas lançadas no tabuleiro da política que tomam o comum enquanto horizonte de enfrentamento ao capital e construção de novos modos de existir se amparam fundamentalmente na produção social contemporânea, nos marcos do capitalismo pós-fordista neoliberal que toma as cidades como lócus (e objeto) privilegiado à acumulação de riqueza. Por outro lado, o que caracteriza o capitalismo pós-fordista do nosso tempo é uma estrutura produtiva dinâmica e flexível, disseminada em rede e fundada sobre a cooperação das singularidades, em que a produção imaterial tende progressivamente a suplantar a hegemonia da produção industrial: ideias, informações, conhecimentos, formas de comunicação, relações sociais, etc., como “fonte primordial de riqueza”, tendo a produção de subjetividade a primazia sobre qualquer outro produto. Aqui se considera que a produção imaterial de linguagem, saberes e afetos é, em princípio, comum, até que se opere a captura pelo capital, via direito de propriedade, o que ao mesmo tempo, contraditoriamente, restringe sua produtividade. Assim, é nessa fábrica pós-fordista, esparramada pelo — e intrincada com o — espaço metropolitano que a força produtiva se conforma cada vez mais como uma intelectualidade da multidão.
Metrópole biopolítica
O que seriam os piquetes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST nas principais avenidas de São Paulo se não a investida política em face da produção/circulação de mercadorias materiais/imateriais nessa gigantesca fábrica biopolítica? Como diz Peter Pelbart, [1] vivemos num “momento em que o comum, e não a sua imagem, está apto a aparecer na sua máxima força de afetação, e de maneira imanente, dado o novo contexto produtivo e biopolítico atual” (PELBART, 2011:29). Posto isso, fica mais claro como rastrear e cartografar a produção do comum no âmbito da metrópole biopolítica almeja alcançar pistas, possíveis indicações de como, “no interior dessa megamáquina de produção de subjetividade, surgem novas modalidades de agregar, de trabalhar, de criar sentido, de inventar dispositivos de valorização e de autovalorização” (PELBART, 2011:23), fora do comando exercido pelo Estado-capital e de modo antagônico aos valores capitalísticos por ele encampados e disseminados na conformação das subjetividades, seja na escola, seja via concessões públicas do espectro rádio-televisivo ou via dispositivos móveis parcelados em 24 meses no cartão de crédito.
Desse modo, já não cabem formulações e projeções utópicas, ou seja, prescindimos de construtos imaginativos apartados da realidade para nos fazer caminhar rumo à sociedade pós-capitalista, visto que o comum se confirma no horizonte da metrópole biopolítica exatamente porque o presente traz consigo uma produção que é comum; em outras palavras, não se trata de utopia, porque a aposta em torno do comum parte do campo de imanência, da dimensão constituinte da produção biopolítica. De igual modo, a felicidade capaz de nos mover é mais aquela que hoje experienciamos nas resistências positivas, mais do que qualquer outra situada no lugar da utopia, ou melhor, no não-lugar. Basta observar as formas de produção, organização e expressão dos movimentos multitudinários na atualidade para perceber a importância dada à busca da felicidade e à experimentação de outros modos de vida no seio das lutas. Se, por um lado, o poder instituído busca imobilizar e reduzir nossa potência por meio do medo e das paixões tristes, por outro, os(as) ativistas de todo o mundo reconhecem a dimensão política da felicidade e das paixões alegres para potencializar as resistências e agregar mais pessoas.
IHU On-Line – Como os movimentos de resistência da Multidão tensionam a lógica hegemônica de pensar o espaço urbano?
Joviano Gabriel Maia Mayer – Mais do que a lógica hegemônica de pensar o espaço urbano, os movimentos multitudinários tensionam a própria lógica de produzir o espaço urbano. As resistências positivas, espaços performáticos de combatividade, afetividade e subjetividade, tomaram de assalto as metrópoles como territórios privilegiados de disputa, sobretudo no tocante ao enfrentamento a grandes projetos urbanos ancorados no paradigma da cidade-empresa do planejamento estratégico e das parcerias público-privadas. Nos marcos do neoliberalismo, cada vez mais as resistências se expressam como a defesa de bens comuns frente ao avanço da acumulação por espoliação (HARVEY, 2005), perpetrada ora pelo Estado, ora diretamente pelo capital, mas quase sempre pelo Estado-capital, unidos em simbiose para a captura do comum. Por outro lado, as ações dos movimentos de resistência da multidão potencializam na cidade a conformação de contrapoderes, redes e conexões subversivas, baseadas na comunicação, cooperação e criatividade, em contraposição à cidade neoliberal das parcerias público-privadas. Do Parque Gezi [2] na Turquia, ao parque Augusta [3] em São Paulo; da praça Tahrir [4] no Egito à Puerta del Sol [5] em Madrid, do cais do porto Estelita [6] no Recife à praça de concreto transformada em “Praia da Estação” [7], em Belo Horizonte, em todos esses processos é possível captar um desejo compartilhado de democracia real frente à investida do Estado-capital a despeito dos interesses da coletividade.
Democracia Real
Democracia real que se contrapõe à “democracia direta do capital” característica do paradigma da cidade-empresa. Ademais, a própria complexidade do urbano, enquanto sede privilegiada do poder político e econômico, onde se concentra tudo aquilo que faz a sociedade contemporânea em todos os domínios, especialmente nas metrópoles, cobra a cooperação transdisciplinar como mecanismo indispensável à compreensão dos fenômenos socioespaciais interligados com sua dimensão subjetiva. A “lógica do caos” que acompanha aquilo que Guattari (1992) denominou “cidade subjetiva” exige o uso de métodos de pesquisa que assumam o desafio da complexidade urbana, como é o caso da copesquisa cartográfica, método assumido pelo grupo de pesquisa Indisciplinar UFMG, do qual faço parte.
As lutas multitudinárias nos inspiram a pensar como a inteligência coletiva, ou melhor, como a inteligência de enxame da multidão “pode inventar e construir uma sociedade na qual quem governe seja a sociedade em rede, a riqueza coletiva da cooperação, a potência do comum” (HERREROS e RODRÍGUEZ, 2012:113). Noutros termos, as práticas, estratégias e objetivos das lutas dos movimentos da multidão, embora diferentes, são capazes de se conectar, se combinar e, quiçá, constituir ações e projetos plurais compartilhados. Na atualidade ganha destaque o desejo ambicioso da multidão metropolitana de produção e defesa do comum urbano, partindo da expressão das múltiplas singularidades, sob as bases da democracia real, para além da gestão democrática da cidade concernente às intervenções no espaço. A cidade-empresa do paradigma neoliberal de planejamento estratégico é, por sua vez, a expressão mais bem acabada da ofensiva público-privada contra o comum. Talvez por isso o direito ao comum seja, em última instância, um possível horizonte de convergência das forças vivas que enfrentam o Estado-capital na metrópole biopolítica. Acrescente-se ainda que o comum enquanto princípio político, ao ser criticamente confrontado com a realidade das resistências, das organizações e movimentos, pode contribuir para dar sentido, orientar as práticas de produção, gestão e deliberação, além de potencializar e conectar em rede uma pluralidade de lutas e práticas alternativas antagônicas à cidade-empresa.
IHU On-Line – De que forma os processos históricos, a partir do século XVIII, foram transformando as cidades, que eram espaços de refúgio e liberdade, em ambientes de acumulação capitalista?
Joviano Gabriel Maia Mayer – O capitalismo se formou fora dos muros das cidades. Cabe aqui um breve retrospecto. De fato, a cidade criou as condições de expansão da grande indústria, concentrando a mão de obra, o mercado consumidor, os capitais acumulados, a infraestrutura e o poder político. Simultaneamente, a grande indústria levou ao crescimento da cidade, revolucionando a organização do espaço em nível planetário. A natureza, antes dominante, passou a ser dominada por meio de técnicas cada vez mais sofisticadas. Entretanto, até a conquista do poder político pela burguesia revolucionária europeia, durante séculos a cidade foi o refúgio contra a opressão feudal, o destino prioritário daqueles que buscavam a felicidade, a liberdade e a justiça (PAULA, 2006).
A partir do século XVIII, a cidade se tornou espaço privilegiado da reprodução do capital, abrigando a grande indústria em prejuízo das corporações de ofício. Durante esse percurso a própria estrutura urbana passou a ser produzida e reproduzida sob a lógica da acumulação capitalista, manifestando a cidade não apenas como espaço de reprodução do capital, mas também como objeto desta reprodução, determinada, em grande medida, pela expansão do capital imobiliário, elevado à condição de importante indutor do crescimento econômico. A cidade, gradativamente, reproduziu as contradições sistêmicas da nova ordem social, mercantilizou-se para ser vendida aos pedaços, um produto e não mais uma obra genuinamente humana. O privado se revoltou contra o público, e a festa, antes na rua, espaço comum, torna-se fechada, privada.
A cidade se tornou assim, ao longo do desenvolvimento do capitalismo, um grande negócio, mais do que isso, tornou-se a nova fábrica do capitalismo contemporâneo, “a usina de geração do mundo, fabrica mundi, usina biopolítica de que precisa o capitalismo para vitalizar-se” (CAVA, 2015), plataforma fundamental de acumulação do capital global, espaço privilegiado de controle político, econômico, cultural, etc.
IHU On-Line – De que maneira o espaço urbano se transformou em um grande laboratório das forças sociais? Quais são as potencialidades desses movimentos de resistência?
Joviano Gabriel Maia Mayer – A cidade, especialmente na sua forma metropolitana, agregou no tempo e no espaço as condições objetivas e subjetivas para a libertação da multidão frente ao domínio capitalista imperial. No final do século XIX, Engels [8] já afirmava que somente o proletariado “criado pela indústria moderna e concentrado nas grandes cidades, libertado de todas as cadeias tradicionais, inclusive das que o ligavam à terra, é capaz de realizar a grande revolução social” (ENGELS, 1988). Nesse sentido, a nostalgia romântica da volta ao campo do velho e bom camponês, agora incorporado ao espaço urbano e quebrado em seus tradicionais valores, representaria “atrasar o relógio da história” (idem).
O mesmo raciocínio agora vale para a multidão ante o proletariado descrito por Engels, pois a biopotência criativa da multidão, na qual reside a possibilidade da produção do comum, não deixa margem a nenhum tipo de nostalgia ou utopia com relação às ilhas isoladas pelo oceano. Com todos os seus graves problemas, contradições e mazelas, é a cidade que oferece as maiores possibilidades emancipatórias, pois, dentre outras inúmeras razões, concentra no mesmo território, conectados em redes comunicativas e colaborativas cada vez mais amplas, os(as) agentes da transformação — trabalhadoras, trabalhadores, e todos os que vivem sob o domínio do capital —, o fluxo de informações, a produção artístico-cultural, os avanços tecnológicos, os encontros afetivos, a produção de subjetividade, o poder político, etc. Desse modo, avançar na construção e no compartilhamento dos princípios que orientam as práticas dos movimentos de resistência é importante na medida em que “podem criar o andaime sobre o qual, no caso de uma ruptura social radical, uma nova sociedade possa ser construída” (HARDT e NEGRI, 2014:138).
IHU On-Line – Como o conceito capitalista de pensar o espaço urbano se converte em atomicismo e em uma espécie de antiurbanismo?
Joviano Gabriel Maia Mayer – É interessante notar como a configuração da cidade, em princípio, indica a organização da população em torno de uma vida comunitária — casas próximas umas das outras, espaços de convivência, equipamentos sociais compartilhados, sistema público de comunicação e transporte. Entretanto, o que sobressai, contemporaneamente, é o espaço esmigalhado vendido aos pedaços, a segregação social e racial, o isolamento e o atomicismo. Como dito anteriormente, o capitalismo corrompeu a cidade, fez do solo uma mercadoria valiosa e escassa, protegida pelo instituto sagrado da propriedade imóvel e, paralelamente, criou uma ideologia antiurbana capaz de fazer ruir sua construção como espaço da liberdade, do encontro e da solidariedade. No quadro urbano na atualidade, a exploração direta do(as) trabalhadores(as) se multiplica por meio de uma exploração indireta (LEFEBVRE, 2001) que se estende ao conjunto da vida cotidiana. Esta superexploração é evidenciada, por exemplo, no tempo livre do(a) trabalhador(a) gasto na autoconstrução de sua moradia, nas horas sacrificadas no longo percurso diário entre a casa e o emprego ou, ainda, na carga do trabalho doméstico invisível e não remunerado desempenhado pelas mulheres, indispensável para a reprodução da força de trabalho.
Obscurantismo
Em paralelo, como veementemente criticou Henri Lefebvre, [9] o urbanismo mais oculta do que revela, produz representações ideológicas e institucionais que não dão conta da realidade urbana, com suas problemáticas e práticas, de modo que “a ciência do fenômeno urbano só pode resultar da convergência de todas as ciências” (LEFEBVRE, 2008). Atualmente, entretanto, já não basta mobilizar todas as ciências já que a compreensão da realidade urbana também cobra outros saberes que não gozam necessariamente do estatuto científico.
Multiplicidade de olhares
Evidentemente, a investigação/intervenção sobre o território na metrópole demanda uma multiplicidade infindável de olhares, saberes e formas de expressão: da arquiteta à performer, da produtora cultural à advogada, da liderança comunitária à artista plástica, da cientista política ao morador em situação de rua. Ora, quem melhor para dizer sobre as opressões relacionadas aos processos segregatórios das cidades do que os(as) moradores(as) em situação de rua que trazem nos corpos as marcas da violência cotidiana? Quem melhor para falar sobre autoconstrução do que os(as) pobres urbanos que autoconstruíram suas casas nas favelas e ocupações, os(as) quais cunharam na história de produção das grandes cidades brasileiras essa forma autogestionada de apropriação espacial? É preciso extravasar os campos disciplinares formalmente reconhecidos pelo paradigma científico moderno, agenciando horizontalmente saberes científicos em sentido estrito com outros saberes, narrativas e formas de apreensão da realidade, subvertendo o lugar de enunciação para desafiar o pensamento ideológico hegemônico sobre o território.
IHU On-Line – Atualmente, quais são as principais contradições do espaço urbano?
Joviano Gabriel Maia Mayer – Como dito, a afirmação do capitalismo financeiro global é acompanhada pela acentuação da centralização do capital na metrópole, impondo a ela uma determinada configuração espacial. Tal característica faz da metrópole, como condição geral de produção, o cenário peculiar das contradições próprias do capitalismo: centro e periferia, luxo e miséria, moderno e antigo, legal e ilegal, acessibilidade e exclusão, tudo isso “convivendo” no mesmo espaço metropolitano, forma estendida como condição planetária geral. A própria natureza desses antagonismos da vida metropolitana é essencial para explicar a emergência dos movimentos sociais urbanos em embate com o Estado-capital, provedor das condições necessárias à reprodução dos(as) trabalhadores(as) na cidade. Inegavelmente as manifestações de junho de 2013 no Brasil colocaram, aos movimentos sociais e aos partidos ditos de esquerda, a necessidade de aprofundar a compreensão dos mecanismos de produção e reprodução do espaço urbano, bem como a atuação dos agentes políticos e financeiros nesse campo. As rebeliões deflagradas, sobretudo pela multidão metropolitana, tiveram como pano de fundo a agudização da crise urbana, no entanto as forças políticas da chamada esquerda instituída ainda estão longe de compreender as complexidades próprias do fenômeno urbano fora do prisma estreito da contradição capital-trabalho. Também é evidente que compreender as contradições próprias da lógica de apropriação do espaço, sob os marcos do neoliberalismo, do planejamento estratégico e da cidade-empresa, é pressuposto para a compreensão da crise urbana, razão última das jornadas de junho de 2013, expressa no agravamento da mobilidade urbana e da questão habitacional, pautas centrais na atualidade.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios do movimento urbano na busca pelo comum?
Joviano Gabriel Maia Mayer – As transformações experimentadas no mundo do trabalho e as novas configurações da classe trabalhadora que emergiram da crise do fordismo colocaram desafios enormes às esquerdas tradicionais e especialmente à organização sindical que não está preparada para se opor de maneira ampla e contundente aos processos de acumulação por espoliação, sem contar que o neoliberalismo teve como um dos escopos principais o enfraquecimento das formas tradicionais de organização e luta do trabalho. Se, como diz Harvey, [10] na atualidade a acumulação por espoliação de fato está no primeiro plano da acumulação capitalista global, inegavelmente as lutas contra o saqueio neoliberal das nossas vidas, bens e formas de existência também ocupam hoje o primeiro plano das resistências contra o Estado-capital e, como as vidas são muitas, as lutas também são múltiplas.
Ademais, como os métodos e as formas organizativas do mundo do trabalho são diretamente vinculados a um modo específico de viver e sentir a vida, cabe considerar as mutações operadas no mundo do trabalho que expressam, em síntese, a passagem do conceito de operário-massa para a noção de operário-social, o que se dá especialmente a partir da crise do fordismo e da emergência do chamado capitalismo cognitivo e imaterial que confere primazia à produção de subjetividades. Ocorre que a produção de subjetividade operada e determinada pelo poder instituído sempre deixa margem às resistências pela via de “dispositivos irresistíveis” (NEGRI, 2004). Entretanto, demorou muito para que as forças tradicionais de esquerda começassem a perceber o papel da subjetividade, tanto no domínio biopolítico exercido pelo Império, quanto na arena das resistências empreendidas contra o Estado-capital, as quais frequentemente trazem consigo a afirmação constituinte de outras formas de vida e relações pós-capitalistas. Se, de um lado, nos marcos do capitalismo cognitivo e imaterial, a produção de subjetividade ganha progressivamente importância na extração de mais valor (valores subjetivos agregados ao produto), por outro, a produção de novas subjetividades também se torna central para se vislumbrar qualquer ruptura com o domínio imperial e com o controle biopolítico exercido pelo Estado-capital. Porém, como diz Lazzarato, [11] estamos num momento em que “os métodos para a produção de subjetividade que brotaram do leninismo (o partido, a concepção da classe operária como vanguarda, o ‘revolucionário profissional’) não são mais relevantes para as composições de classes atuais” (LAZZARATO, 2014:19). Isso graças à perda de centralidade do proletariado (representado por um partido de vanguarda) como o sujeito revolucionário por excelência, especialmente em face da crise do fordismo e a nova configuração do trabalho imaterial que modificou profundamente a natureza e a composição da classe trabalhadora mundial.
Horizontalidade
Há muitos outros desafios para além daqueles inerentes às mudanças operadas no mundo do trabalho. Dentre eles a construção de processos autônomos e horizontais de produção coletiva, formação política e ação direta que canalizem as insatisfações dos(as) citadinos(as) e que expressem a construção do comum em oposição ao Estado-capital. Porém, lamentavelmente, as forças políticas construídas pela esquerda brasileira no último quarto do século passado, especialmente os partidos políticos e as centrais sindicais, mostraram-se inadequados como ferramentas políticas aptas a dar vazão à força multitudinária que eclodiu nas ruas em junho. As rebeliões urbanas de 2013 colocam às organizações tradicionais de esquerda a necessidade de rever velhas práticas políticas, reformular concepções tidas como verdades absolutas e ter humildade para se colocar lado a lado, horizontalmente, com a multidão que abalou as estruturas do poder instituído. Quem sabe assim, partindo da compreensão de que essa multidão metropolitana (que não se reduz à classe operária e seus aparelhos de representação) pode se revelar como potência constituinte frente ao poder instituído quando seus múltiplos desejos se confluem, essa velha esquerda possa contribuir na edificação de uma alternativa que confronte o controle biopolítico do Estado-capital a partir da produção do comum. Nas maiores metrópoles brasileiras atualmente, grandes projetos urbanos concebidos via parceria público-privada à revelia da população chamam a atenção como importantes trincheiras de organização multitudinária, mobilização política, constituição do comum e produção de novas subjetividades. Não somente pela amplitude desses projetos que muitas vezes afetam a vida de parte considerável da população, mas também por serem a expressão mais bem acabada da lógica de gerenciamento empresarial do espaço urbano.
IHU On-Line – Frente os desafios habitacionais de nosso tempo, que estratégias são mais condizentes com a constituição do poder popular? Por que as ocupações se constituem em uma forma não somente de luta por moradia, mas também política?
Joviano Gabriel Maia Mayer – No Brasil, a questão habitacional é uma das principais questões modernas não resolvidas pela modernidade, o que ainda torna a luta pela moradia central na atuação dos movimentos urbanos, os quais recorrentemente utilizam as ocupações de imóveis ociosos como mecanismo legítimo de pressão política e efetivação do direito de morar. A legitimidade da retomada organizada ou espontânea de vazios urbanos inutilizados encontra guarida no próprio ordenamento jurídico nacional, sobretudo na função social da propriedade urbana, cumulada com o princípio democrático que pressupõe o direito de lutar pela efetivação dos direitos e o direito constitucional à moradia adequada que também goza de proteção no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é país signatário.
Para além do objetivo imediato de conquista da moradia, a retomada de vazios urbanos pelos sem-teto implica a experimentação de novas formas de apropriação do espaço, nas quais princípios como a cooperação, o coletivismo ou a democracia real ganham conteúdo subversivo sob certas condições. É nesse domínio que a multidão (também) se revela como contrapoder: resistência, insurgência e poder constituinte, conjuntamente articulados, dinamicamente imbricados, ora mais, ora menos. Essas três dimensões do contrapoder, organicamente coadunadas, também podem ser identificadas na luta das ocupações de sem-teto. Resistência contra o desalojamento, liminarmente concedido, tão logo divulgada e denunciada a violação coletiva da cerca que protegia a ilegalidade do descumprimento da função social. Poder insurgente, por sua vez, consubstanciado na quebra do estatuto de propriedade como instituição protegida pelo Estado (constituído). Força constituinte conformada pela multidão na defesa e construção do comum urbano, cuja potência pode criar territorialidades contra-hegemônicas, novas sociabilidades, modos de vida, experimentações e narrativas insurgentes, em que pese o poder simbólico e material da cidade-empresa. Especialmente na última década e, ainda com maior intensidade, após as jornadas de junho de 2013, as ocupações organizadas por movimentos sociais se multiplicam nas metrópoles brasileiras, não raro garantindo o assentamento de milhares de famílias pobres que não podem aceder à aquisição da moradia, como é o caso de Belo Horizonte, em que grandes ocupações têm possibilitado moradia digna a milhares de famílias, a exemplo das ocupações da Izidora, [12] Dandara [13] etc.
IHU On-Line – Que novas formas de convivência e, portanto, biopolíticas emergem com as ocupações nas Metrópoles?
Joviano Gabriel Maia Mayer – Nos territórios recuperados pelos sem-teto, a multidão se explicita como carne no fazer comum, organismo multiforme no qual não é possível diferenciar propriamente o corpóreo e o intelectual, a práxis e a teoria, a experiência concreta e o projeto encarnado. Enquanto o Estado e a iniciativa privada só têm o Minha Casa Minha Vida a oferecer, verticalmente, como política habitacional, com unidades rígidas, projetos padronizados e conflitantes com as culturas construtivas dos(as) pobres urbanos, as ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras, cada vez mais indispostos a aceitar proposições políticas hierarquizadas que se apresentam como solução para os seus problemas e que atentam contra seus modos de vida e suas singularidades. A autoconstrução nas ocupações urbanas é uma modalidade aberta de produção habitacional que respeita as práticas culturais e as singularidades dos pobres urbanos. Cabe lembrar que as ocupações e outras práticas de autoconstrução de moradias fazem parte da história de formação, expansão e esgarçamento das grandes cidades brasileiras, não há qualquer novidade em pobres ocupando imóveis ociosos para autoconstruir suas moradias e experimentar nos territórios aí constituídos formas de vida, produção, convivência e sociabilidade singulares. Como frequentemente afirmam os movimentos, a luta das ocupações de moradia não se reduz apenas à defesa do direito à moradia, não raro ainda confundido com o direito de propriedade, mas também dizem respeito ao direito à cidade.
“As ocupações promovem a construção de novos territórios insurgentes nas metrópoles brasileiras”
Resistência
Isso também implica a defesa pelas famílias sem teto do seu modo de viver e ocupar o espaço na cidade, com autonomia para determinar, por exemplo, a tipologia e o tempo de construção da moradia, tempo quase sempre estendido e condicionado às condições econômicas de cada família, mas por outro lado sem o risco de retomada compulsória pela instituição financeira credora ao longo das décadas do financiamento imobiliário contratado. Nas ocupações, o risco do despejo por parte do Estado, por sua vez, é contornado pela fé coletiva no êxito da resistência organizada em rede para a defesa do território comum. Em Belo Horizonte, desde 2008, nenhuma ocupação urbana organizada pelos movimentos foi despejada! Dentre os desafios colocados aos movimentos urbanos e às novas ocupações de sem teto, destacamos a necessidade de se superar o limite estreito da propriedade privada dentro das próprias ocupações, com a demarcação de lotes individuais, para experimentar formas coletivas inovadoras de apropriação espacial, bem como avançar na dimensão constituinte da resistência, com a produção de equipamentos e práticas coletivas (econômicas, políticas e culturais) que aprofundem a produção de novas subjetividades nessas ocupações. Para tanto, talvez o primeiro passo seja conceber tais ocupações como espaços comuns de resistência biopotente e exercício democrático na metrópole contemporânea, sujeitos indispensáveis à construção de uma nova sociabilidade urbana.
*Esta entrevista foi publicada originalmente na Revista IHU On-Line, Nº. 474, de 05/10/2015
Notas:
[1] Peter Pal Pelbart: graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, e em Filosofia pela Sorbonne, em Paris, é mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP com a dissertação Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão (2ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2009). Cursou doutorado na USP e é livre docente pela PUCSP. Entre outras obras, é autor de Vida capital. Ensaios de biopolítica (São Paulo: Iluminuras, 2003) e O tempo não reconciliado (São Paulo: Perspectiva, 1998). Leciona na PUCSP. (Nota da IHU On-Line)
[2] Parque Taksim Gezi: é um parque urbano situado na Praça Taksim, no distrito de Beyoğlu, em Istambul, na Turquia. É um dos parques de menor tamanho da cidade. Em maio de 2013, o anúncio governamental de um plano que pretende demolir o parque para dar lugar à reconstrução do histórico Quartel Militar Taksim (demolido em 1940) e, também, à construção de um centro comercial, desencadeou uma onda de protestos na Turquia. (Nota da IHU On-Line)
[3] Parque Augusta: é uma área de 24 mil metros quadrados, delimitada pelas Ruas Augusta, Marquês de Paranaguá, Caio Prado, no centro da Cidade De São Paulo. É uma propriedade privada, mas com áreas registradas em cartório como públicas – 80% dela não pode, por lei, ser alterada – e que uma parcela significativa da população paulistana quer ver transformada em parque público sem edificações em seu interior. (Nota da IHU On-Line)
[4] Praça Tahrir cujo equivalente latino é “Praça da Libertação”): é a maior praça pública no centro de Cairo, Egito. Originalmente chamada Praça de Ismail, em honra a Ismail Paxá, vice-rei (quediva) do Egito no século XIX, que comissionou o projeto arquitetônico do novo distrito central da capital egípcia na década de 1860. Depois da Revolução Egípcia de 1952, quando o Egito deixou de ser uma monarquia constitucional e tornou-se uma república, a praça passou a se chamar midan al-tahrir, praça da libertação. (Nota da IHU On-Line)
[5] Puerta del Sol: é um dos locais mais famosos e concorridos da cidade espanhola de Madrid. É neste local que se encontra desde 1950, o quilómetro zero das estradas espanholas.Em 2011 a praça foi ocupada por integrantes do Movimento 15M que protestavam por uma democracia mais participativa na Espanha. (Nota da IHU On-Line)
[6] Ocupe Estelita: é um movimento social que se contrapõe à construação de 12 torres de uso residencial e comercial no Cais José Estelita, em Recife, Pernambunco. O local o abrigava o pátio ferroviário onde foi inaugurada a segunda linha ferroviária urbana do Brasil, em 1859, por Dom Pedro. (Nota da IHU On-Line)
[7] Praia da Estação: trata-se de um movimento que surgiu em 2010 como uma reação a um decreto da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte que proibia a realização de eventos de qualquer natureza na Praça da Estação, um dos pontos turísticos mais antigos da capital mineira. (Nota da IHU On-Line)
[8] Friedrich Engels (1820-1895): filósofo alemão que, junto com Karl Marx, fundou o chamado socialismo científico ou comunismo. Ele foi co-autor de diversas obras com Marx, e entre as mais conhecidas destacam-se o Manifesto Comunista e O Capital. Grande companheiro intelectual de Karl Marx, escreveu livros de profunda análise social. (Nota da IHU On-Line)
[9] Henri Lefebvre (1901—1991): foi um filósofo marxista e sociólogo francês. Estudou filosofia na Universidade de Paris, onde se graduou em 1920. (Nota da IHU On-Line)
[10] David Harvey (1935): é um geógrafo marxista britânico, formado na Universidade de Cambridge. É professor da City University of New York e trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana. (Nota da IHU On-Line)
[11] Maurizio Lazzarato: Sociólogo e filósofo italiano que vive e trabalha em Paris, onde realiza pesquisas sobre a temática do trabalho imaterial, a ontologia do trabalho, o capitalismo cognitivo e os movimentos pós-socialistas. Escreve também sobre cinema, vídeo e as novas tecnologias de produção de imagem. É um dos fundadores da revista Multitudes. O IHU já publicou uma série de textos e entrevistas com Maurizio Lazzarato entre elas: O “homem endividado” e o “deus” capital: uma dependência do nascimento à morte. Entrevista com Maurizio Lazzarato publicada na IHU On-Line, edição 468, de 29-06-2015, disponível em http://bit.ly/1WmGF9v; Subverter a máquina da dívida infinita. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 02-06-2012, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1N0i2JB; “Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo”. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 05-01-2011, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejolW; “Os críticos do Bolsa Família deveriam ler Foucault…” Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 15-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GLy9d9; Capitalismo cognitivo e trabalho imaterial. Entrevista com Maurizio Lazzarato, publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1LejOsv; As Revoluções do Capitalismo. Um novo livro de Maurizio Lazzarato. Reportagem publicada em Notícias do Dia, de 06-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/1GXuMlq. (Nota da IHU On-Line)
[12] Resiste Izidora: batizada de Izidora, a ocupação mineira é formada por 3 vilas interligadas (Esperança, Rosa Leão e Vitória) e tem cerca de 20 mil pessoas a mais que a paulista, quase todas morando em casas de alvenaria. A enorme área da Mata do Izidoro, na região norte da capital mineira. (Nota da IHU On-Line)
[13] Ocupação Dandara: ocupação urbana na região norte de BH- MG que conta com mais de 1000 famílias organizadas há mais de 5 anos na luta por uma vida mais digna. (Nota da IHU On-Line)
Referências
CAVA, Bruno. Metrópole como usina biopolítica. O trabalho da metrópole: transformações biopolíticas e a virada do comum na conjuntura brasileira. In Revista on line do Instituto Humanitas Unisinos. Ano XV, nº. 464, 2015. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php… d=5909&secao=464. Acesso em 04 de julho de 2015.
ENGELS, Friederich. A questão da habitação. São Paulo: Acadêmica, 1988.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Declaração – Isso não é um manifesto. São Paulo: n-1 edições, 2014.
HARVEY, David. O Novo Imperialismo. 2ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
HERREROS, Tomás; e RODRÍGUEZ, Adriá. Revolução 2.0: direitos emergentes e reinvenção da democracia. In: Revolução 2.0 e a crise do capitalismo global. COCCO, Giuseppe e ALBAGLI, Sarita (Org.). Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2012.
LAZZARATO, M. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo, Editora n-1, 2014.
LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. 2ª ed., Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica da multidão. In revista Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. Rio de Janeiro: UFRJ, Escola de Comunicação, nº. 19-20, 2004.
PAULA, João Antônio de. As cidades e A cidade e a universidade. In: As cidades da cidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
PELBART, P. P. Vida capital. Ensaios de biopolítica. Ed. Iluminuras: São Paulo, 1ª Ed., 2ª reimpr., 2011.
Fonte: IHU, quinta-feira, 8 de outubro de 2015