Neoliberalismo, Estado de mal-estar social

Sergio Granja

Não basta que o pensamento procure se realizar; a realidade deve compelir a si mesma em direção ao pensamento.” – Karl Marx

Sergio Granja

Sergio Granja

Na regulação das relações que os homens estabelecem entre si, configuram-se direitos sociais, que constituem garantias de solidariedade na comunidade humana. Em todos os tempos, eles são objeto de uma encarniçada disputa. Em torno deles se armou o cenário das lutas de classe nos países capitalistas centrais. Entre esses direitos, a escola pública gratuita, laica e universal foi uma das primeiras conquistas, nascida da Revolução Francesa. Seguiram-na como direitos sociais conquistados pelas forças populares: a saúde pública, a previdência social, a assistência social, etc.   Esse conjunto de direitos sociais deu origem, após a II Grande Guerra (1939-1945), aowelfare State [Estado de bem-estar], contra o qual o capital lançou a ofensiva neoliberal.

Assim, ao longo das lutas de classes no mundo capitalista, foi se afirmando a ideia de que o Estado é responsável pela proteção dos setores sociais mais vulneráveis economicamente.  Mas foi só com o welfare State que se consolidou o conceito de Seguridade Social.

A Seguridade Social abarca o tripé saúde, previdência e assistência social.   No Brasil, esse conceito foi plasmado pelo art. 194 da Constituição de 1988, baseado na noção de “pacto entre gerações” e no “princípio da solidariedade”, segundo os quais os benefícios presentes e futuros dos trabalhadores são custeados pelas contribuições passadas, presentes e futuras de toda a sociedade.

A Constituição de 1988 consagrou direitos sociais que são contestados pela direita desde a sua promulgação.  Muitos desses direitos foram sistematicamente ignorados e, em alguns casos, revogados sumariamente.  Na linha de fogo dos ataques da direita encontra-se o próprio conceito de Seguridade Social nos termos em que está inscrito na Constituição de 1988.

Collor, Fernando Henrique e Lula intentaram contrarreformas da Previdência Social, sempre na mesma linha de revogação de direitos sociais.  Alguns desses intentos contrarreformistas obtiveram êxitos e resultaram seja na perda de arrecadação de recursos da Seguridade Social (através de isenções fiscais e contrarreformas tributárias), seja na perda de direitos previdenciários de categorias específicas, seja na depreciação de aposentadorias, pensões e benefícios de uma forma geral, seja na dilatação do tempo de contribuição ou do aumento da idade para a aposentadoria.

A Constituição de 1988 garantiu os recursos para o financiamento da Seguridade Social, assegurando o provimento dos direitos sociais.  Na atual quadra da vida política nacional, defender o marco legal da Constituição de 1988 é barrar a ofensiva neoliberal contra os direitos sociais por ela consagrados.  Por isso, é inadiável o comprometimento com a luta em defesa dos direitos sociais consagrados no dispositivo constitucional de 1988, particularmente no que se refere à Seguridade Social e à Previdência.  Aliás, o PSOL nasce da resistência dos trabalhadores e de uma fração dos parlamentares petistas à contrarreforma previdenciária levada a cabo pelo governo Lula.

À política de desmanche do Estado – como agência econômica, de prestação de serviços públicos e de proteção social -, de desregulamentação do mercado e retirada das barreiras protecionistas, de precarização das relações trabalhistas e do emprego deu-se o nome de neoliberalismo.  Todavia o Estado neoliberal continua operando na esfera econômica como grande consumidor de mercadorias e contratador de serviços, mas também através de mecanismos tributários, fiscais e financeiros de transferência de renda para o setor privado e da contenção das lutas sindicais e populares.

Trata-se da velha ideologia liberal, que correspondia à época do capitalismo de livre concorrência, só que ressurgida em condições históricas de crescente monopolização da economia, dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural, apontando não para o pluralismo, mas para a homogeneização, a massificação, a uniformização do consumo de descartáveis, a tendência ao pensamento único.  O discurso liberal é o mesmo, mas o acontecimento discursivo é outro.

Antes de se generalizar como diretriz de política econômica dos países capitalistas – em reação contrarreformista à estagflação gerada pela crise de 1973-1979, que colocou em xeque o welfare State –, o neoliberalismo foi implantado, primeiro, no Chile de Pinochet (1973-1990) e, em seguida, na Inglaterra de Thatcher (1979-1990) e nos Estados Unidos de Reagan (1980-1988).

Perry Anderson, em Balanço do neoliberalismo (1994),  considera que a Inglaterra de Margaret Thatcher encarnou a forma canônica do neoliberalismo.  “O modelo inglês – diz Perry Anderson – foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado.”

No Brasil, o neoliberalismo surge como política de governo sob a presidência de Collor (1990-1992); atinge o seu clímax no PROER e no auge das privatizações durante os governos FHC (1995-2002); e tem seguimento, atenuado por políticas compensatórias, nos governos de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2014). Em 2015, a crise bate à porta dos brasileiros e as políticas de “ajuste” do governo Dilma apontam para o aprofundamento das políticas neoliberais, com novas perdas de direitos sociais e desidratação das políticas compensatórias.

No ensaio A época neoliberal: revolução passiva ou contrarreforma?, Carlos Nelson Coutinho conceitua a época neoliberal como um período de contrarreformas.

As consequências sociais do neoliberalismo são graves: a combinação de desemprego, exclusão social e apelo ao consumo – numa sociedade atomizada pelo individualismo e pela competitividade, na qual o marketing dita a moda e as pessoas valem mais pelo que têm do que pelo que são – delineia um quadro de degradação da convivência social que fomenta a desesperança, a violência e a barbárie.

Resistir aos “ajustes” é preciso!

Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos