Ainda estou em dívida com os/as leitores/as do blog no que diz respeito a pelo menos dois artigos ainda referentes à EGU-2015, a Assembleia Geral da União Europeia de Geociências. Mas não poderia me furtar a tecer alguns comentários sobre o Dia da Terra, ainda que, em Terra Brasilis, o 22 de Abril tenha marcado justamente o início da ocupação europeia e, por conseguinte, do maior processo de devastação de florestas tropicais na escala planetária (ao se somar o que se perdeu na praticamente dizimada Mata Atlântica, da qual restam menos de 10% da cobertura original, com a perda também gigantesca de área da Floresta Amazônica, que já se aproxima de 1/5 da sua área total).
Poderia até soar desnecessário que pontuássemos uma data como o “Dia da Terra”, para quem tem bem mais de 1,66 trilhões de dias como nosso planeta (a conta inicial seria multiplicar os 4,54 bilhões de anos pelo número de dias em cada ano, mas no passado, como a Terra girava mais rápido, essa quantidade era maior do que 365, já que cada dia continha menos horas, levando a um número certamente bem maior). Mas efetivamente pertencemos a uma espécie cuja contradição maior parece ser entre a de produzir ações capazes de alterar irreversivelmente o curso da história geológica com um grau de consciência extremamente baixo dessa mesma capacidade e dos danos já existentes e, sobretudo, dos potencialmente muito maiores que podemos causar, ao ambiente, à biosfera terrestre e, claro, a nós mesmos. Na semana que precedeu a celebração do Dia da Terra, a estação de Mauna Loa registrou incríveis 404 partes por milhão de CO2 na média semanal e dois novos recordes foram confirmados pela NOAA: Março de 2015 é o mês de março mais quente de todo o registro histórico desde 1880 e o trimestre deste ano é também o início de ano mais quente de todo esse registro. Nessa trajetória, 2015 baterá o recorde absoluto de temperatura global com sobras. Mas é algo que parece permanecer invisível, somente porque a maioria da sociedade insiste em manter os olhos fechados.
Números de Mauna Loa são assustadores. A semana anterior ultrapassou 404ppm de CO2. Ainda que a cifra tenda a cair a partir de maio com a primavera e verão no Hemisfério Norte, os números sugerem uma aceleração da acumulação de CO2 na atmosfera: 2,22 ppm por ano em média na última década e 2,54 ppm da mesma data de 2014 para este ano.
Ubíqua, a mudança climática afetará a todos nós o tempo todo. É por isso que desde já é preciso enfrentá-la em tudo, todo tempo. Para termos ao menos um portfólio de opções para discutirmos depois, precisamos mover algumas peças urgentemente no tabuleiro climático. Já! Emissões precisam cair urgentemente. Desmatamento precisa cessar, termelétricas precisam de plano de fechamento e a indústria petroquímica precisa ser forçada ao declínio, afinal como diz May Boeve, Diretora da organização não-governamental 350.org, “os planos de investimento da indústria de combustíveis fósseis e um planeta habitável são simplesmente incompatíveis”. Solarização residencial e transporte público e não-poluente devem emergir como soluções corriqueiras na marcha rumo à extinção dos combustíveis fósseis. Consumismo e desperdícios não podem ser admitidos e dieta a base de carne de ruminantes tem de mudar. Essas ainda não são soluções definitivas, mas precisam ser adotadas nos próximos 5-10 anos para que se tenha possibilidade de buscá-las.
Por um período relativamente longo houve certamente dentro da comunidade de cientistas do clima a ilusão dominante de que bastaria colocar as peças do quebra-cabeça científico no lugar para, tendo sido identificado o problema da mudança antrópica do clima, seu caráter deletério, seu alcance e sua urgência, para que formuladores de políticas e tomadores de decisão agissem, após negociações climáticas baseadas na racionalidade e embasadas na ciência. Mas está muito claro hoje que essa noção mostrou-se absolutamente ingênua e que a melhor salvaguarda que se pode dar à credibilidade da ciência, um dos motes comumente usados para que cientistas não atuem politicamente e não se envolvam em ativismo, é agir na proporção das certezas que temos em relação à gravidade da crise climática e como ela pode nos afetar de maneira simplesmente devastadora. A zona de conforto precisa se tornar inabitável antes de que o planeta se torne e nesse contexto cabe a quem tomou consciência do risco de colapso do clima como o conhecemos falar sobre isso alto e claro! Isto, evidentemente, impõe aos/às cientistas (que também são mães, pais, cidadãos, habitantes do planeta) que corramos os riscos. Estamos em um momento em que “credibilidade” não implica em “neutralidade”, muito pelo contrário.
E é por isso que o abandono da ilusão de que algo para resolver ou mesmo minorar a crise climática possa vir espontaneamente da governança existente, com parlamentos eleitos sob forte influência do poder econômico, com governos nacionais ao mesmo tempo constituídos numa lógica de defesa de interesses de Estados-nação opostos entre si e submetidos a uma pressão inaudita dos lobbies das corporações, implica em que se dê outro passo. É preciso casar a ciência com os potenciais agentes de mudança. É preciso esclarecer que a unificação de todas as demandas por um mundo justo, livre, igualitário, radicalmente democrático, profundamente solidário passou de uma necessidade social, econômica para uma necessidade física. E é preciso igualmente esclarecer que novos ingredientes precisam se somar e se articular com as demandas tradicionais de quem se opõe ao sistema que ora está a arruinar a única morada de onde nossa espécie, ao lado de incontáveis outras, tira seu sustento.
Seria irracional não lutar contra a terceirização agora, já, argumentando que em condições de colapso climático não teríamos mesmo empregos; seria injustificável não lutar contra a redução da maioridade penal, na defesa dos direitos da juventude sob risco iminente de morte porque a juventude não teria futuro mesmo num planeta devastado; seria ilógico interromper a batalha pelos direitos LGBTs afirmando que eles pouco importariam num mundo em que água, comida e segurança face a eventos extremos seriam a tônica; não haveria sentido em abrir mão do combate pela educação, da defesa da escola e da universidade públicas, etc. porque estas serão um luxo numa sociedade atirada às trevas da fome, sede e barbárie. Isso me parece muito claro, cristalino e não é à toa que me envolvo, de maneira militante, prática e emocionalmente nessas tantas frentes de luta, apoiando-as dentro do meu entendimento do problema, do meu alcance, do respeito aos alterprotagonismos.
Mas é essencial, da parte daqueles que participam desses e diversos outros movimentos (negro, indígena, feminista, sem-teto, sem-terra, liberdade religiosa, direitos de imigrantes, direito ao transporte, à água, etc.) exercitar o raciocínio “da volta” e pensar essas lutas num contexto de ameaça real da continuidade dos sistemas de suporte à vida humana, que estão demandando ação urgente, imediata e radical. Todas as batalhas que citei – e tantas outras – encontram-se hoje, numa condição em que mais do que consciência “de classe” (na verdade, da percepção mais ampliada do locus socioeconômico face à complexa interação entre exploração econômica e manifestações opressivas de diversas naturezas), é preciso ter consciência de espécie e – acima desta – consciência de biota! Tenho absoluta certeza de que o valor de cada uma das lutas mencionadas só se amplia e se enriquece; de que elas só se tornam mais generosas, altruístas e por isso mesmo mais poderosas; se as mesmas se articularem pela grande e necessária torrente cuja demanda só se pode resumir na própria urgência de permanecermos – no tempo, no espaço e no/a outro/a – vivos/as.
Fonte: O que você faria, quarta-feira, 22 de abril de 2015
Alexandre Costa, Ph.D. em Ciências Atmosféricas, é Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará