“Se as mulheres não agirem por si mesmas, outros sempre irão agir sobre elas ou em seu nome”, diz Isabel Loureiro

Isabel Loureiro, professora aposentada do Departamento de Filosofia da Unesp e colaboradora da Fundação Rosa Luxemburgo

A Fundação Lauro Campos, apresenta, por meio desta colaboração de Isabel Loureiro, algumas ideias introdutórias para conhecer a revolucionária judia polonesa, que atuou na Polônia e na Alemanha no começo do século XX. Rosa nasceu em 5 de março de 1871, dia em que lançamos esta importante contribuição para a formação política de nossos militantes.

FLC – Rosa nasceu na Polônia, passou por muitas adversidades em sua vida e se tornou uma revolucionária importante com olhar cosmopolita. Você pode nos apresentar um pouco dessa jornada da mulher, do seu nascimento até se tornar uma liderança revolucionária?

Isabel Loureiro

É importante destacar que Rosa Luxemburgo nasceu numa pequena cidade da Polônia russa, Zamość. Ela era a quinta e última filha de uma família judia de classe média cultivada. Quando tinha três anos a família se muda para Varsóvia, onde Rosa passa a frequentar o liceu russo para moças.

A Polônia, na época, não era independente, e estava dividida entre três países. Uma parte era ocupada pela Prússia, uma parte pelo império austro-húngaro, uma parte pelo império russo. Rosa nasceu justamente na parte russa da Polônia, o que confere sabor especial a suas ideias sobre a política que os socialistas deviam adotar em relação à Polônia. Insisto nisso porque um terço da obra de Luxemburgo está escrita em polonês, tendo vindo a público na imprensa da Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia (SDKPiL), partido que Rosa ajudou a fundar em 1893, em Zurique, com Leo Jogiches, Julian Marchlewski e Adolph Warski. E insisto porque a Rosa polonesa é quase totalmente desconhecida pela recepção de sua obra, inclusive na Alemanha. Só recentemente esses textos vêm sendo traduzidos para o alemão e serão publicados em breve nos volumes 8 e 9 das Obras completas.

Mas voltando à sua pergunta. Quando estava no liceu, Rosa começou a militar no socialismo polonês, o que representava um grande perigo, pois poderia ser presa e enforcada, como aconteceu com outros revolucionários contemporâneos dela. Não havia liberdades democráticas no império russo, que era uma autocracia dominada pelo tzar. Então, ao terminar os estudos secundários, Rosa se exilou na Suíça, também para poder frequentar a universidade, o que não era possível na Polônia. A Suíça era na época o país mais democrático da Europa, era lá que se exilavam os revolucionários de todas as latitudes. Na universidade de Zurique Rosa começou estudando ciências naturais, para as quais tinha grande inclinação. Mas quando conheceu Leo Jogiches, revolucionário lituano que virou seu companheiro de vida por 15 anos, e de luta política pela vida inteira, ele a convenceu a estudar o que hoje conhecemos como ciência política e economia política. Foi na universidade de Zurique que Rosa estudou os escritos de Marx e se aparelhou para sua posterior carreira como jornalista, militante e teórica marxista. Foi também em Zurique, depois em Paris onde foi pesquisar para sua tese de doutorado intitulada “O desenvolvimento industrial da Polônia” (1898), e editar o jornal da SDKPiL, A causa operária, que Rosa entrou em contato com os socialistas russos e poloneses ali exilados, e também com alguns social-democratas alemães que viviam em Zurique. Isso facilitou posteriormente sua aceitação pelo Partido Social-Democrata Alemão (SPD). Em resumo, seu olhar cosmopolita se formou em Zurique e em Paris.

FLC – Quando Rosa chegou à Alemanha não teve vida fácil: pouco dinheiro, relações conjugais tumultuadas, difícil aceitação em um partido dominado por homens. Como você qualifica esse processo?

Isabel Loureiro

É verdade que a vida de Rosa em Berlim nunca foi fácil, sobretudo no começo. Mas sua inteligência fulgurante e energia sem limites, dedicadas num primeiro momento a combater as ideias revisionistas que começavam a criar raízes no movimento socialista da época, fizeram com que fosse respeitada como teórica marxista, tanto no SPD quanto na Internacional Socialista. À medida em que vai sendo convidada para escrever em jornais importantes do SPD, à medida em que se afirma como grande conhecedora das ideias de Marx, Rosa vai se tornando uma mulher independente que deixa de aceitar um relacionamento amoroso insatisfatório com Leo Jogiches. Em 1907, para ganhar a vida, aceita o cargo de professora de economia política na escola de formação de quadros do SPD. É também nesse ano que rompe seu relacionamento com Jogiches. Mas, como disse antes, o vínculo político permanece até o fim da vida. Rosa e Leo são duas faces da mesma moeda política, ele não existe sem ela, e vice-versa.

Um acontecimento divisor de águas na vida de Rosa foi a Revolução Russa de 1905-1907. Ela escreveu inúmeros artigos sobre os eventos que primeiro acompanhou de Berlim e depois presenciou diretamente, a partir do começo de 1906, quando foi para Varsóvia. Os artigos eram para a imprensa do SPD e do SDKPiL, estes em polonês, só recentemente traduzidos para o alemão.

Rosa é encarcerada em Varsóvia em março de 1906 junto com Leo Jogiches. Ameaçada de execução, é libertada no final de junho graças a uma fiança paga pelo SPD. Obrigada pelas autoridades tzaristas a fixar residência em Kuokkala, pequena cidade finlandesa perto de São Petersburgo onde encontra os principais revolucionários russos, Lenin entre eles, Rosa redige seu texto mais conhecido da época, “Greve de massas, partido e sindicatos”. Esse pequeno escrito marca o início de sua ruptura com a direção da social-democracia alemã e mostra, pela primeira vez, uma contribuição original de Rosa à teoria marxista. A experiência direta da Revolução Russa fortaleceu nela a convicção de que as grandes transformações históricas não são fabricadas pelas organizações políticas – ainda que estas tenham um papel relevante a desempenhar – e de que a consciência de classe é antes criada na ação que produzida pela leitura de obras teóricas marxistas, ou de panfletos revolucionários.

Disse antes que em 1907 Rosa se torna professora na escola do SPD, cargo que ocupa até 1914. Ela era a única mulher professora. A partir desses cursos de economia política e história econômica Rosa escreve Introdução à economia política, publicado postumamente em 1925, e sua obra magna, A acumulação do capital (1913), ambas traduzidas para o português. Estas obras contêm ideias que são de grande atualidade para os socialistas da América Latina, como explicarei daqui a pouco.

FLC – Em agosto de 1914, Rosa rejeitou a aprovação dos créditos de guerra, que o Partido Social-Democrata Alemão, o mais significativo do seu tempo, defendeu majoritariamente e seus representantes votaram no parlamento. Quais as principais polêmicas e quais as consequências mais significativas desse processo?

Isabel Loureiro

A aprovação unânime dos créditos de guerra no dia 4 de agosto de 1914 pela bancada social-democrata no Parlamento alemão representou uma guinada de 180 graus para o movimento socialista no mundo todo. O SPD abandona o combate contra o militarismo, que era seu programa até então, e passa a apoiar a política de união nacional preconizada pelo governo imperial. A partir desse momento, Rosa Luxemburgo, junto com o deputado Karl Liebknecht, começa a liderar um pequeno grupo de oposição à guerra, que mais tarde adotará o nome de Liga Spartakus, em homenagem ao escravo trácio que na Roma antiga liderou uma rebelião contra os mandantes da época.

Presa durante um ano (fevereiro de 1915 a fevereiro de 1916), acusada de agitação antimilitarista, Rosa escreve, sob o pseudônimo de Junius, “A crise da social-democracia”, texto publicado na Suíça em 2016 devido ao estado de sítio implantado na Alemanha por causa da guerra. Seu objetivo era ajustar contas com a social-democracia alemã e com as massas trabalhadoras alemãs por terem abandonado a luta de classes e terem aderido entusiasticamente à guerra imperialista. Naquele momento, ela considerava que a humanidade se encontrava perante a seguinte alternativa: socialismo ou barbárie. O essencial do texto é dedicado ao estudo das causas da guerra e da história da Alemanha desde 1870. Rosa refuta os argumentos dos dirigentes do SPD que tentavam justificar a aprovação dos créditos militares e a política de união nacional em torno do imperador Guilherme II, dizendo que se tratava de uma guerra de defesa da Alemanha contra a autocracia russa. Rosa mostra com riqueza de detalhes que a guerra foi deliberadamente desejada pela Alemanha, o que se comprovava pela política armamentista e imperialista adotada por esse país a partir do final do século XIX.

Mas Rosa acredita que nem tudo estará perdido se os trabalhadores souberem aprender com a própria experiência e tirarem lições de seus próprios erros. A partir da guerra ela percebe que a tarefa dos revolucionários é muito mais difícil do que supunha antes, que é preciso fazer a crítica dos equívocos e das ilusões das massas, que não há “guia infalível” que mostre ao proletariado o caminho a seguir: “A experiência histórica é sua única mestra”.

FLC – Quais as principais publicações sobre e de Rosa Luxemburgo que você indica para leitura dos ativistas? Quais você considera que podem contribuir para um trabalho de formação político-teórica?

Isabel Loureiro

Eu indicaria os Textos escolhidos publicados pela Editora UNESP. Os principais artigos políticos de Rosa Luxemburgo se encontram ali. Mas para quem não tem tempo de ler tudo, aconselho pelo menos três escritos: “Questões de organização da social-democracia russa” (1904), em que Rosa polemiza com a concepção de partido-vanguarda de Lenin; “Greve de massas, partido e sindicatos” (1906), em que aparece com clareza sua concepção de espontaneidade das massas; “A Revolução Russa” (1917), em que, polemizando com os bolcheviques, defende as liberdades democráticas como pré-requisito indispensável para a formação e conscientização política dos trabalhadores, tanto no período de transição ao socialismo quanto durante a instituição de uma sociedade socialista. “Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente”, é o famoso slogan que consta da crítica ao fechamento da Assembleia Constituinte pelos bolcheviques logo após tomarem o poder. Esses seriam os escritos essenciais para se entender suas ideias políticas.

Também aconselho que leiam os sete últimos capítulos de A acumulação do capital, os capítulos históricos, em que ela mostra como o desenvolvimento do capitalismo no plano global sempre precisou extorquir as economias não-capitalistas externas à metrópole. Luxemburgo é a primeira autora marxista a falar do vínculo entre metrópole e periferia como elemento imprescindível para a acumulação do capital e a mostrar que essa é uma relação de subordinação e violência entre centro e periferia. Nesse sentido, sua teoria do imperialismo é hoje mais atual do que nunca.

E por fim recomendo a leitura do livro organizado pelo historiador alemão Jörn Schütrumpf, Rosa Luxemburgo ou o preço da liberdade (São Paulo, Expressão Popular/Fundação Rosa Luxemburgo, 2015). É uma boa introdução ao pensamento de Rosa, além de ter uma pequena coletânea de textos dela e sobre ela, que ajudam a situar seu pensamento político e econômico. E pode ser baixado do site da FRL: www.rosaluxspba.org

Recomendo também a biografia em quadrinhos de Kate Evans, Rosa vermelha (São Paulo, Martins Fontes, 2017), feita para um público não especializado, que mostra uma Rosa feminista, muito dona do seu nariz, divertida, inteligente, sensível, militante anticapitalista incansável, em busca de um modo de vida alternativo à barbárie do século XX. Enfim, uma Rosa para o nosso século.

FLC – Rosa, mulher, revolucionária, ativista em ambientes predominantemente masculinos, nunca foi feminista no sentido estrito do termo, certo? Quais as principais contribuições que podem ser identificadas na vida e nas obras da Rosa para a luta das mulheres? Como a leitura da Rosa pode contribuir para as questões atuais que ganharam centralidade no movimento das mulheres e sobre o tema do feminismo?

Isabel Loureiro

É verdade que Rosa adota a posição convencional das feministas marxistas sobre a emancipação das mulheres no começo do século XX. Ou seja: a opressão de gênero se resolverá no socialismo! Para ela, o que importava era a luta pelo socialismo, tudo o mais se subordinava a esse objetivo principal. Qual seria então sua contribuição ao movimento feminista?

Primeiro que tudo, seu exemplo como mulher independente. Não teorizou sobre o amor livre, mas o praticou; não teorizou sobre a emancipação das mulheres por meio do trabalho assalariado – embora seja este o aspecto que ela reconhece como fundamental para a emancipação das mulheres -, mas foi uma mulher independente na prática, por meio de seu trabalho intelectual como jornalista e professora.

Na década de 1980, as feministas alemãs viram na Rosa militante política, que participava do espaço público como oradora, jornalista, professora uma fonte inspiradora. Havia a ideia de que a participação das mulheres no espaço público já seria um avanço em termos de humanização. Era o que preconizava Raya Dunayevskaya em Rosa Luxemburgo, a libertação feminina e a filosofia marxista da revolução.  Mas foi preciso ver mulheres em altos cargos para perder as ilusões no tocante a esse ponto (Cf. Frigga Haug, Rosa Luxemburg y el arte de la política, Madrid, Tierradenadie, 2013).

Mas, para além do exemplo biográfico, uma ideia que é central no pensamento político de Rosa Luxemburgo foi considerada de grande valia para uma política de emancipação das mulheres: a de que as massas populares só se emancipam por conta própria, por meio de sua ação autônoma. Assim como as massas, se as mulheres não agirem por si mesmas, outros sempre irão agir sobre elas ou em seu nome. Ou seja, a emancipação dos subalternos, quer seja uma classe, quer sejam as mulheres, só pode resultar da ação autônoma das próprias afetadas. Liberdade outorgada não é verdadeiramente liberdade.

Além desse ponto que toca na auto-emancipação das mulheres, há outro que considero ainda mais fértil para a teorização feminista inspirada em Rosa Luxemburgo. Refiro-me às teorias que partem da tese central de sua principal obra de economia política, A acumulação do capital: o capital, para acumular, precisa de domínios externos a ele. Nesse processo de “acumulação primitiva permanente” destrói de maneira violenta esses domínios extra-capitalistas ao transformá-los em mercadoria. Tal era, grosso modo, a explicação de Luxemburgo para as origens do imperialismo.

As feministas alemãs, nos anos 1980, atualizaram essa tese mostrando que os espaços de acumulação do capital não são só geográficos, mas também sociais, e incluíram aí o trabalho doméstico não remunerado das mulheres, que permite ao capital pagar salários menores aos trabalhadores do sexo masculino. Uma das autoras mais conhecidas dessa corrente, Maria Mies, mostra que o capitalismo contemporâneo, para se expandir, precisa tanto das colônias quanto das donas de casa como setores não-mercantis. Para ela, a mãe-natureza, as mulheres e as colônias são centrais e não periféricas no processo de acumulação do capital. Numa época em que o trabalho braçal voltou às antigas colônias, em que o capitalismo usa o trabalho das mulheres para produzir mercadorias para exportar, Mies constata que o capital internacional redescobriu as mulheres do Terceiro Mundo, concluindo que o trabalho flexível, precário, mal remunerado (ou não-remunerado) das mulheres se tornou a referência para a acumulação do capital em larga escala. O livro de Silvia Federici, Calibã e a bruxa (São Paulo, Editora Elefante, 2017), retoma essa ideia de maneira brilhante.

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Isabel Loureiro é professora aposentada do Departamento de Filosofia da UNESP, pesquisadora, autora de vários livros sobre Rosa Luxemburgo e colaboradora da Fundação Rosa Luxemburgo. A principal obra publicada, da qual ela assumiu a organização, a tradução dos artigos que constam do volume II, apresentação e notas, foi lançada em 2011 no Brasil, pela editora UNESP, São Paulo. Em 2017, foi publicada nova edição, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo. São três volumes, dois de textos escolhidos, um de cartas, que apresentam formulações, ideias, narrativas, ações políticas e sentimentos de Rosa Luxemburgo.