Joaquim: “Herói” sepultado?

André Luan Nunes Macedo*

Os tempos desérticos em termos de utopia nacional e de plena celeridade golpista demonstram que não basta morrer uma única vez. Que a derrota política advinda da traição determina a criação de uma imagem. Um sepultamento completo, não somente da pessoa física, como também de conceitos fundamentais para a resistência: sedição, rebelião, luta contra as elites e a perspectiva estratégica anti-colonial são jogadas para a passividade do “passado morto”. O passado passa a ser inativo e inoperante. Por ele não se pode problematizar, uma vez que o “contexto é outro”, radicalmente distinto dos tempos de outrora e, portanto, pouco exemplar. Cabe somente, nos tempos atuais, a mera sobriedade e assepsia.

Uma ideia-síntese desta morte que só se permanece ativa no imaginário popular mineiro e brasileiro é a de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Nas pesquisas históricas nos livros didáticos recentes[1], esse indivíduo aparece como um “mito de uma época”. As representações em torno das suas atividades políticas são parcamente problematizadas. De protagonista da Conjuração Mineira, Tiradentes é mais um Joaquim qualquer, executado exemplarmente devido à sua “loucura republicana”, que tinha consigo a ideia de transformar Minas Gerais em uma nação industrial e de desenvolvimento intelectual elevado. Nesse sentido, numa sociedade que não “cabe heróis” – leia-se: militantes e políticos destacados com projetos históricos rebeldes que produzem uma autodistinção importante para compreender a razão de ser de um pensamento indignado num determinado contexto – cabe ao livro didático brasileiro consolidar uma pedagogia “política sóbria”, apresentando Tiradentes apenas pela representação “de corpo esquartejado”, como lembrado na belíssima e trágica pintura de Pedro Américo. Trata-se de uma pedagogia política conservadora, que não quer mostrar o lastro popular deste homem, cheio de contradições e que, ao longo de todo o século XX, à esquerda e à direita, foi tratado no Brasil como elemento que impulsiona nossa esperança rumo a luta por reformas profundas em prol das maiorias[2]. Trata-se de desvinculá-lo das tavernas e de suas contradições cotidianas que o fizeram ser conhecido como um indivíduo que tentou desafiar a tirania colonial.

Nesse dia 21, não cabe a nós glorificar Tiradentes. Porém, cabe situá-lo novamente como o sujeito que resiste. Que discute. Que tenta organizar um dissenso. Que foi contra a ideia “manda quem pode, obedece quem tem juízo” ainda prostrada com força no senso comum da nação, herança da ditadura militar. É preciso enxerga-lo com o olhar do mito proposto por Jose Carlos Mariátegui: “a civilização burguesa sofre da ausência de um mito, de uma fé, de uma esperança. Ausência que e a expressão de sua falência material. A experiência racionalista teve a paradoxal eficiência de conduzir a humanidade à triste convicção de que a Razão não lhe pode oferecer nenhum caminho” [3]. O excesso de sobriedade dos historiadores, super-brecthianos, propagadores da ideia do “feliz da sociedade que não depende de heróis” perdeu consigo, nesse caminho, a tendência de problematizar a pedagogia política e a retomada do fio da história. Perdeu a capacidade de ser um campo intelectual de ideias perigosas para a classe dominante, assumindo a postura asséptica e distante das lutas pela emancipação nacional.

Entre os mineiros e visitantes de Ouro Preto, sempre ouço a história de que a cidade carrega “uma energia pesada e negativa”. Esse senso comum remonta não somente ao bárbaro passado escravista, como também o aborto de uma sedição traída por delatores abonados.

Vivemos a era da “delação premiada” e de “luta contra a corrupção”. Não quero aqui fazer tábula rasa. Porém o paralelo me parece pertinente, desde que seja tratar os contextos com suas diferenças. Nesse sentido, não acredito que seria pedagógico tratar o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci como um “Joaquim Silvério dos Reis do século XXI” ou a tirania judiciária e golpista de Sérgio Moro como se fosse a alma do “Visconde de Barbacena”. A história da Conjuração Mineira e de Tiradentes pode oferecer uma pedagogia política revolucionária e ativa. Onde a práxis do falar em público, em defesa de um programa anti-colonial, popular e nacionalista seja vista não como mera “loucura” entre nós brasileiros, mas como um elemento fundamental da nossa brasilidade. De unidade aberta e de luta contra o subdesenvolvimento.

O dia que a foto de Tiradentes tomar as ruas novamente, não tenho dúvidas, será o dia em que os próprios dias nublados e cinzentos de Ouro Preto serão menos lembrados do que os seus lindos dias ensolarados, de clima ameno, cuja primavera será nosso horizonte civilizatório de expectativa, nossa grande utopia nacional.

Ao Republico beberrão e falador da verdade, os meus parabéns! Carrego contigo seu exemplo! Meu camarada de luta! Viva Joaquim, nosso eterno Tiradentes.

*Mineiro de coração e criação, Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

[1] Publiquei um artigo no ano de 2016 na revista de Teoria da história e Historiografia da Universidade do Estado de Goiás. Para maiores informações sobre o tema e minha opinião a respeito: http://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth/article/view/4596/4164.

[2] Destacamos o breve destacamento armado inspirado nas lutas das Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião no ano de 1961, o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Para maiores informações, ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/movimento-revolucionario-tiradentes-mrt.

[3] Ver: https://www.marxists.org/portugues/mariategui/1925/01/16.htm.